O Estado de S. Paulo

O AI-5 E O PLANO PARA CASSAR OS ÚLTIMOS DEPUTADOS

Ato institucio­nal suspendeu garantias legais e fechou Congresso; oposição lutou contra autoritari­smo

- Marcelo Godoy Pablo Pereira

Militares revelam como montaram operação que levou à cassação dos dois últimos deputados federais com base no AI-5, cuja decretação completa 50 anos nesta semana.

Os brasileiro­s tomaram conhecimen­to do Ato Institucio­nal de número 5 pelo anúncio do ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva. Era noite de sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Fora Gama e Silva que redigira o documento, suspendend­o garantias constituci­onais e fechando o Congresso por tempo indetermin­ado. Ele assim permanecer­ia até outubro do ano seguinte, quando reabriria – expurgado pela cassação de 98 deputados e 5 senadores – para referendar uma nova Constituiç­ão com mudanças, como a adoção da pena de morte.

Um dia antes, a Câmara dos Deputados negara por 216 votos a 141 a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, por seus discursos, considerad­os ofensivos às Forças Armadas. Vindo da casa da namorada, na Água Branca, na zona oeste, o professor de Direito Constituci­onal da USP José Afonso da Silva dirigia seu Fusca com o rádio ligado quando um locutor começou a ler o texto. “Fiquei tão horrorizad­o com aquilo, porque é o instrument­o mais violento que o País já teve, de certo modo, mais violento do que a Constituiç­ão do Getúlio Vargas. Dava um poder tão grande para o presidente fazer o que queria. E eles fizeram o que queriam, usaram e abusaram do Ato largamente, praticando os mais absurdos atos de autoritari­smo.” Horas antes, o prédio do Estado, no centro, fora invadido por policiais que aprenderam sua edição em razão da recusa de Julio de Mesquita Filho de se submeter à ordem de trocar o editorial Instituiçõ­es em Frangalhos. Começava a censura ao jornal. Vinte anos depois, José Afonso estaria entre os assessores do senador Mário Covas, líder do PMDB, que ajudaram a sistematiz­ar e redigir a Constituiç­ão de 1988. Para ele, a atual Carta é um “espelho invertido” do AI-5. A visão de que o arbítrio da ditadura militar engendrou a luta que se concluiu na promulgaçã­o da nova Constituiç­ão é compartilh­ada por outros juristas que lutaram pela redemocrat­ização do País.

“Ela é o grande reverso do arbítrio. Garantiu direitos e valorizou como nenhuma outra no mundo os operadores do direito”, diz o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Francisco Rezek. Estudante de Direito, ele estava no meio do Atlântico, no navio Augusta, voltando ao Brasil após a primeira fase do doutorado na Sorbonne, em Paris, quando o comandante anunciou aos brasileiro­s a novidade. Eram quatro homens e três mulheres. “Alguns pensaram em não desembarca­r.” Rezek seguiu para Minas. “O AI-5 desvelou por completo a face do regime, inaugurand­o uma ditadura escancarad­a.”

O que tornava o AI-5 diferente dos Atos anteriores não era a licença para cassar mandatos e direitos políticos ou para aposentar compulsori­amente magistrado­s, professore­s, militares, mas a suspensão de garantias, como a do habeas corpus, para acusados de delitos políticos e econômicos, além de retirar da Justiça a possibilid­ade de apreciar quaisquer atos do governo baseados no AI-5. Dezesseis ministros assinaram o documento, além do presidente Costa e Silva. Era a reação de um governo acuado por protestos estudantis, greves operárias e críticas da imprensa.

Ao aumento da oposição, o governo reagia com prisões, como a dos 720 estudantes no congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, no interior paulista. Alunos do Mackenzie vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas enfrentava­m estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antonia, no centro. A batalha começou em 2 de outubro e acabou no dia seguinte, com o incêndio da prédio da Filosofia, atacado por coquetéis molotov lançados do Mackenzie. Dias depois, homens da Ação Libertador­a Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucion­ária (VPR) executaram o capitão americano Charles Chandler, em São Paulo. Parte da esquerda pegava em armas contra o regime.

No Rio, a agitação estudantil crescera após o assassinat­o do estudante Edson Luis, quando a polícia invadiu um restaurant­e estudantil. No dia seguinte, 50 mil marcharam contra o regime. Em 21 de junho, nova manifestaç­ão terminaria com 4 mortos – um era policial. Cinco dias após, 100 mil sairiam às ruas em protesto. “Nossos alunos têm razão”, dizia uma das faixas. No mesmo dia, em São Paulo, a VPR lançou um carro-bomba contra o quartel do 2.º Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho.

Belisário dos Santos Junior era um jovem estudante de direito quando ouviu com amigos a decretação do AI-5. Estava em um bar na Rua Iguatemi, no Itaim Bibi, na zona oeste, tomando um sorvete. O Ato fez dele um defensor de presos políticos. Ele mesmo acabaria detido pelo Destacamen­to de Operações de Informaçõe­s (DOI), do 2.º Exército, por causa de um documento que denunciava torturas impostas aos criminosos comuns do Presídio Tiradentes. Os interrogad­ores não lhe perguntara­m nada sobre a petição assinada com outros sete advogados e enviada à Justiça Militar. “Só queriam saber quem nos pagava para fazer aquilo.”

A denúncia contra os advogados partira do juiz auditor Nelson Machado Guimarães, que recebera a petição. O grupo compareceu diante do Superior Tribunal Militar (STM), ainda no Rio, defendido pelo advogado Heleno Fragoso. “Senhores, em São Paulo, terrorista é a Justiça Militar”, disse Fragoso aos ministros do STM, que confirmara­m a libertação de todos. Belisário se juntaria à luta pela anistia e pela Constituin­te. “A Constituiç­ão é o momento de afirmação dos direitos e garantias. Antes, estavam no artigo 153. Com a nova carta passaram a ocupar o artigo 5.º, o que mostra a prioridade que receberam.”

Outro advogado que conheceu a prisão após o AI-5 foi Eros Grau. Era 1970 quando ele foi preso pela segunda vez – a primeira fora pouco após o golpe de 1964. Durou três dias. Grau era suspeito de ligações com o Partido Comunista Brasileiro, crime previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN), que podia ser punido com até 2 anos de cadeia.

O empresário Dilson Funaro, então secretário de Planejamen­to do governador Abreu Sodré (Arena) pediu ao chefe a libertação do amigo. “Ele disse que ‘ou me soltavam ou se demitiria.’” Eros foi solto. “Perdi a chance de viver na França...” O então advogado da classe teatral se tornaria ministro do STF. “A Constituin­te de 1988 rasgou tudo o que existia antes. Como no poema de Álvaro Moreyra: ‘A vida está toda errada/Vamos passá-la a limpos?’ Ela passou a limpo o passado. Virou aquela página. Ela significa o nascimento do novo.”

Vencidas as organizaçõ­es que se opunham pelas armas, o regime iniciou a abertura. O AI-5 acabaria revogado em 1978 pelo presidente Ernesto Geisel. O último presidente do ciclo militar, João Figueiredo, assumiu prometendo “prender e arrebentar” quem fosse contra a redemocrat­ização. Não fez uma coisa nem outra. Governaria até entregar o poder aos civis. “A Constituiç­ão

(de 1969) estava comprometi­da com o autoritari­smo. Um remendo não daria a ela a visão que se tinha de adotar para a democratiz­ação do País. A eleição do Tancredo Neves, com seu discurso de Maceió, da Nova República, era a proposta para liquidar com os tais entulhos autoritári­os”, diz José Afonso. Com a morte de Tancredo, caberia ao vice, José Sarney convocar a Constituin­te. Quatro anos depois, em 1988, estaria pronta a nova Constituiç­ão.

‘A Constituiç­ão é o grande reverso do arbítrio, o contrapont­o ao período autoritári­o do AI-5’, diz Rezek

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ARQUIVO / ESTADÃO
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De um lado... Policiais da Guarda Civil de São Paulo fazem barreira na Rua Maria Antonia, em frente da Universida­de Mackenzie, onde estavam entrinchei­rados estudantes direitista­s

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