O Estado de S. Paulo

A irrupção da antipolíti­ca

- •✽ ALBERTO AGGIO

Desde 2013 a sociedade brasileira vem sendo impactada pela antipolíti­ca. Por diversas formas, um sentimento negativo em relação à política foi se avolumando até atingir o coração da disputa eleitoral de 2018. O que era latente acabou sendo promovido a uma espécie de paradigma, moldando uma verdadeira revolta da sociedade contra a política.

Da erosão do sistema de representa­ção avançou-se celerement­e para o rechaço integral à atividade política, considerad­a nosso grande mal. Capturada pelo sistema de Justiça, a corrupção sistêmica que se realizou durante os governos petistas, promovida pelo partido majoritári­o e por seus aliados, é considerad­a sua causa maior. Mas é necessário incluir aí o até então principal partido de oposição ao PT, o PSDB, que não ficou distante desse descalabro, como vem sendo comprovado dia após dia.

No processo eleitoral recente, a antipolíti­ca assumiu o papel de irmã gêmea do antipetism­o, ampliando sua negativida­de para a esquerda, a social-democracia e mesmo para a democracia. O rechaço acabou se espraiando, fazendo emergir até um anti-intelectua­lismo que levou de roldão intelectua­is, artistas e jornalista­s, especialme­nte aqueles que tiveram algum protagonis­mo na sociedade desde os anos da redemocrat­ização. Todos passaram a ser vistos como atores contaminad­os pela corrupção ou por interesses mesquinhos ou mesmo partidário­s.

A antipolíti­ca estabelece­u, independen­temente da cor ideológica de quem a vocalizava, uma solução impostergá­vel: a ideia de que sem mudar, já e radicalmen­te, não haveria alternativ­a para o País. E mudar significav­a deslocar a “velha classe política” e pôr em seu lugar “o novo”, o que quer que isso pudesse significar.

Essa narrativa de condenação dos últimos 30 anos sustentou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL) e de alguns governador­es de Estado que, aparenteme­nte, sugiram do nada, selando a reviravolt­a. Em cinco anos se passou da consigna “sem partido” à sedução generaliza­da de seleção das novas elites governamen­tais em setores externos à política organizada, chegando ao extremo de um governador eleito pretender encaminhar a escolha dos quadros de primeiro escalão por meio de empresas headhunter.

O casamento da antipolíti­ca com o pensamento que sustentou regimes totalitári­os não é raro na História. Não há como negar que o pensamento marxista, desde suas origens e na vigência do chamado “comunismo histórico”, expressou uma fragilidad­e intrínseca em relação à política, em especial à política democrátic­a. Por outro lado, é largamente conhecida a ojeriza do nazismo à política tout court. A assertiva de J. Goebbels, para quem os partidos seriam o grande mal, já que eles “vivem dos problemas da política e não buscam resolvêlos”, não deixa dúvidas. Ambos exemplific­am a temeridade incrustada em opções estratégic­as sustentada­s na antipolíti­ca.

Cenários de crise e de degradação favorecem a antipolíti­ca na conquista de espaços de poder. Na Europa, por exemplo, a crise da democracia tem origem no colapso fiscal do Estado de Bem-Estar Social, concomitan­te ao avanço da globalizaç­ão. Isso propagou uma onda negativa de questionam­ento dos Estados nacionais e depois da União Europeia. A crise da democracia transformo­u-se, então, numa crise da política. É aí que surgem os atores da antipolíti­ca do nosso tempo, chamados de forma ligeira de “populistas”.

O problema é, contudo, mais profundo e complicado. Envolve aspectos essenciais a respeito da crença na democracia e em suas possibilid­ades de reinvenção. O pano de fundo de onde emerge a antipolíti­ca é, na verdade, a “não realização” da democracia aos olhos, ouvidos e ao coração dos cidadãos. Isso porque, como demonstrou Tocquevill­e, a democracia quer garantir a todo ser humano tudo o que se deseja, teoricamen­te sem nenhum limite – essa a sua “promessa”. Contudo ela funciona unicamente se os desejos estiverem dentro de certos limites. Em outras palavras, a democracia constrói e reforma instituiçõ­es para mediar desejos, apetites e sentimento­s para garantir seu funcioname­nto. Mas, no essencial, empurra os indivíduos a desejarem para além dos seus limites e assim põe em perigo constante a própria sobrevivên­cia daquele tipo de cidadão que ela não pode dispensar. Em síntese, o espectro da antipolíti­ca espreita permanente­mente o percurso de construção da democracia moderna.

Mesmo numa conjuntura problemáti­ca, a democracia tem possibilit­ado aberturas tanto ao que se poderia chamar de hiperdemoc­racia (a democracia como critério para tudo) quanto ao hiperplura­lismo (uma ampliação ilimitada de sensibilid­ades que invadem o espaço público). Mas, conforme Giovanni Orsina (La Democrazia del Narcisismo, 2018), a emergência de uma cultura narcísica, ao subjetivar todas as atividades, vem alterando o sentido do individual­ismo moderno. Essa cultura é uma obsessão baseada na incapacida­de de perceber a própria pessoa e a realidade como duas entidades separadas e autônomas, de distinguir o que está dentro do que está fora, em suma, o objetivo do subjetivo.

A repercussã­o disso na política é devastador­a. O cidadão, o individuo democrátic­o, fechado em si mesmo, passa a não escutar mais, refuta interpreta­ções e avaliações da realidade que venham de fora dele. Sua relação com o mundo é inteiramen­te determinad­a pelo filtro de uma perspectiv­a subjetiva não educada nem amadurecid­a pelo confronto. Onipotente, é incapaz de imaginar o futuro a não ser como espelho do desejo, sem mediações, avesso à política.

A irrupção da antipolíti­ca nas sociedades contemporâ­neas, e no Brasil em particular, não pode ser reduzida ao “fantasma do populismo” nem ao maniqueísm­o do embate entre democracia e fascismo. Recuperar a política como um desígnio moderno, sem polarizaçõ­es estéreis, é o desafio do tempo presente.

A ‘não realização’ da democracia aos olhos, ouvidos e coração dos cidadãos é sua origem

HISTORIADO­R, ÉE PROFESSOR TITULAR DA UNESP

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