AMORDAÇADO PELA DITADURA, JORNAL LUTA PELA LIBERDADE
Editorial faz general apreender edição; regime impõe censura prévia ao ‘Estado’
Aedição do Ato Institucional-5 (AI-5) marcou, em 13 de dezembro de 1968, o início da censura sistemática à imprensa, que só acabaria dez anos depois. Houve pressão, ameaças e atentados contra O Estado de S. Paulo desde o golpe militar de 31 de março de 1964, mas os censores não frequentavamaRedaçãonesseperíodo.Arepressão chegou para valer quando a Câmara negou a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves. A censura no Estado começou, aliás, em 12 de dezembro, véspera do anúncio do AI-5. O chefe da Polícia Federal em São Paulo, general Sílvio Correia de Andrade, telefonou para a Redação para saber qual seria a manchete do dia seguinte. “Câmara nega; prontidão”, informou o editor-chefe Oliveiros S. Ferreira. O general deu-se por satisfeito, mas o jornal foi apreendido ao chegar às bancas, na madrugada seguinte.
O general liberou o noticiário, mas não gostou do editorial Instituições em frangalhos, no qual o diretor do jornal, Julio de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, criticava o presidente Costa e Silva. “Era um textoduroecorajoso,querefletiaatradicional independência do jornal em relaçãoaosgovernantes”,dizojornalistaMiguel Jorge, na época repórter do Jornal
da Tarde, vespertino da empresa. Foi o último editorial do Doutor Julinho. Ele deixou de escrever na seção Notas e Informações, na página 3, em protesto contra a censura. Revoltado com a apreensão do jornal, mandou seu filho Juliode Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de Abreu Sodré e ao general Correia de Andrade que não faria autocensura. Se o governo quisesse proibir alguma notícia, pusesse censores na Redação. Sua resistência custou caro. “O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai”, disse o jornalista Ruy Mesquita em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho. Ele caiu doente quando parou de escrever o editorial e morreu em julho de 1969, sete meses após a edição do AI-5.
Os censores se instalaram na Redação na noite de 13 de dezembro, ao lado dos jornalistas atônitos que se agrupavam em frente da TV para assistir ao
“É que, com o correr do tempo e o contacto com a realidade, vai S. Exa. percebendo que governar uma nação de mais de 80 milhões de habitantes e que acaba de dar, com a vitória de 64– que, embora S. Exa. a considere como obra das Forças Armadas, se deve ao próprio esforço da coletividade –...”
anúncio do AI-5. O locutor oficial Alberto Curi leu o texto do ato, ao lado do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da USP.
Recusa. Os jornais da família Mesquitanãofaziamautocensura.“Façamasreportagens e escrevam, os censores que cortem”, era essa a orientação. Oscensores permaneceram no prédio da Rua Major Quedinho, sede do Estado no centro da cidade, até o dia 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram e só votaram em agosto de 1972. Nesse intervalo, a censurapréviaerafeitaportelefonemasdaPolícia, bilhetes e listas de assuntos proibidos. Como não se permitia deixar espaços em branco, recorria-se a textos aleatórios para mostrar aos leitores o que estava ocorrendo. Cartas inventadas pelos redatores, despachos judiciais, orientações de cultivo de flores interrompiam com destaque o noticiário nas páginas nobres, para cobrir o vazio de editoriais e reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.
Apesar do cerco policial, milhares de exemplares do Estado chegaram às ruas no dia 13. O pessoal da expedição armou uma operação de guerra. “Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos uns 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição”, lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, onde funcionava o jornal, no centro.
Também o JT foi proibido de circular e apreendido. Seus diretores se recusaram a trocar textos considerados “mais exaltados”, depois de terem publicado, no dia 12, um editorial sobre a crise política com o título Mais uma demonstração
de inviabilidade do regime. Repórteres e editores fizeram um esquema semelhant ea odo Estado para garantir a distribuição.EnquantoaPolíciavigiavaaRuaMajor Quedinho, 84.900 exemplares escaparam pela Rua Martins Fontes, do outro lado do prédio.
O general Sílvio Correia de Andrade ficou furioso. Percorreu as bancas do bairro de Higienópolis para recolher o
JT pessoalmente. “Esse jornal traiu a Revolução”, gritava sem parar, conforme lembra Fernando Mitre, atual diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes.
Reação. O escritor e jornalista Ivan Ângelo, então secretário de Redação do JT, lembra a reação dos jornalistas. “Quando o censor entrou na sala, logo nos primeiros dias, todos nós nos retiramos, em sinal de protesto. O censor perguntou se o pessoal estava saindo por causa dele e eu disse que certamente sim, pois isso nunca havia ocorrido antes.”
Os jornalistas faziam o que podiam para infernizar a vida dos censores. “Contrabandeando informações que seriam censuradas no meio de outras matérias, em linguagem pouco usual – e não apenas isso, mas também esvaziando os quatro pneus do carro de um deles apenas para vê-los, da janela, suando a camisa num trabalho mais digno que aquele a que se haviam habituado ”, disse Carlos Brickmann, repórter político.
Proibido de publicar a notícia da demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda, Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu em 1973 uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado. “Agora é samba”, dizia o anúncio, com grande impacto. Repetiu-se a dose no dia seguinte, quando foi publicada, no lugar de outra foto de Cirne Lima, uma ilustração com uma rosa branca. Legenda: “A rosa, louvada por poetas desde tempos imemoriais, continua simbolizando o amor”.
Os editores publicavam também poesias no lugar do material cortado. O primeiro poema, Y – Juca Pirama , de Gonçalves Dias, saiu em destaque na
“...,uma demonstração viva de fé democrática, é coisa muito diferente do comando de uma divisão ou de um exército.(...) A Arena aderia à rebeldia geral com tamanha evidência que o próprio MDB sentiu que era chegado o momento da desforra.”
página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Nem todos os leitores entenderam o recado. Muitos telefonaram ou escreveram para cumprimentar o
Estado pelo apoio à literatura e ao cultivo de flores. Diante dessa reação, Julio de Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada, de modo que o leitor identificasse a censura.
O redator Antônio Carvalho Mendes, responsável por um acoluna sobre cinofilia e pela seção de falecimentos, sugeriu a publicação repetida de versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. O poeta português apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da USP, foram cortados 1.136 textos no Estado, de 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura. NoJT,RuyM esquita optou pela publicação de receitas de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas. Repórteres e correspondentes do
Estado foram perseguidos por causa do seu trabalho. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do presidente Ernesto Geisel. “O Estadão se posicionou firmemente contra a ditadura e alguns de seus jornalistas foram torturados, como foi o meu caso, por defenderem a liberdade de imprensa”, disse Garcia. Em outubro de 1975, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, foi preso e torturado no Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, na mesma semana e local em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob torturas.
Julio de Mesquita Neto resistia à censura e protestava contra a ditadura. “Meu pai aproveitava suas viagens para denunciar no exterior a falta de liberdade de imprensa no Brasil”, disse Júlio César Mesquita, lembrando discursos e pronunciamentos feitos na Europa e nos Estados Unidos. Pela sua coragem, Julio Neto ganhou o Prêmio Palma de Ouro da Liberdade, concedido pela Federação Internacional dos Editores de Jornais. No JT, o diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que mandou a Alfredo Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a PF baixou novas normas de censura à imprensa. Dizia o texto:
“Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perdera compostura ... Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia eentão,sr. Ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas...” Os militares ficaram furiosos, recorda Mitre, por terem sido chamados de nazistas e fascistas.
“Meu pai lutou contra a censura e contra todas as barbaridades do regime militar”, disse Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito. Ainda adolescente na época, ele se lembra hoje de Ruy Mesquita falando aos berros, pelo telefone, com um general. “Meu pai defendia os jornalistas que eram presos e perseguidos. Os diretores do Estado edo Jornal da Tarde sabiam e denunciavam o que estava acontecendo. O prédio do Estado foi alvo de três bombas em atentados terroristas, de esquerda e de direita, em represália à sua posição em defesa da democracia”, acrescentou Ruyzito.
Missão. Correspondente em Buenos Aires, onde era exilado político e assinava seus textos com o pseudônimo de Julio Delgado, Flávio Tavares lembra como iludiu a censura, quando os Mesquitas não se dobraram à “inquisição” militar. “Usávamos todos os estratagemas para driblar a censura.” Em 1977, Flávio foi preso e torturado no Uruguai, acusado de espionagem, após ter entrevistado Leonel Brizola no exílio. Foi libertado por pressão do Estado, que enviou Júlio César Mesquita e advogados do escritório de Gerson Mendonça Neto a Montevidéu para resgatá-lo.
A censura só acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário do Estado. Era o cumprimento de um compromisso assumido pelo general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência em março de 1974. As dificuldades, porém, continuaram, até o fim do AI-5, em 1978.
“Resolveu então, com uma ousadia que a todos espantou, enfrentar a ditadura militar em que vivemos desde 1964 ferindo na sua suscetibilidade as Forças Armadas brasileiras.” Jornais da família Mesquita não fazem autocensura; daí a imposição do regime