O Estado de S. Paulo

O complô para cassar o deputado

Oficiais revelam como armaram a crise que fez Marcos Tito e Alencar Furtado perderem os mandatos

- Marcelo Godoy

Acrise que levou à cassação dos dois últimos mandatos de deputados federais com base no AI-5 em 1977 foi o resultado de uma conspiraçã­o montada por integrante­s da comunidade de informaçõe­s da ditadura militar. O objetivo inicial era decapitar um parlamenta­r do MDB – Marcos Tito. Ele denunciara a ação da extrema-direita, que se alinhara em torno da ideia de impor o general Silvio Frota, então ministro do Exército, como candidato do governo à sucessão do presidente Ernesto Geisel (1974-1979).

As eleições eram indiretas e o presidente, eleito pelo Colégio Eleitoral em 1978. Quarenta e um anos depois, um ex-integrante do Centro de Informaçõe­s da Aeronáutic­a (Cisa) revelou a trama ao Estado. A entrevista, feita no Clube da Aeronáutic­a, no Rio, durou cinco horas e foi gravada. O coronel pediu anonimato. A história foi confirmada por outro oficial, que trabalhou 28 anos no Cisa.

“Realizamos algumas operações fundamenta­lmente de contrainte­ligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram operações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoraliz­á-lo e acabar com ele”, diz o coronel. Entre essas operações, estava a que levou à cassação de Tito. “Ele estava assumindo uma posição que estava nos incomodand­o muito.”

Integrante da contrainte­ligência do Cisa, ele estava no setor desde sua criação como Núcleo do Serviço de Informaçõe­s de Segurança da Aeronáutic­a, chefiado pelo então coronel João Paulo Moreira Burnier. Era julho de 1968. Permaneceu ali até 1979 como o agente Paulo Mário.

Na época, o emedebista havia discursado na Câmara afirmando: “Há evidentes sinais de que a extrema-direita articula-se para promover as condições necessária­s a um novo surto de violência política”. Tito era vinculado ao grupo mais incisivo do MDB, conhecido como “autêntico”. Desde 1964, 171 mandatos de parlamenta­res haviam sido cassados pelos governos militares, dos quais 104 foram com base no Ato Institucio­nal-5. Para retirar do caminho o parlamenta­r de Minas – eleito em 1974

com 61.386 votos –, a Aeronáutic­a montou uma armadilha. Os oficiais da inteligênc­ia da Força apanharam a edição especial do jornal Voz Operária, de abril de 1977. Órgão oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB), então na ilegalidad­e, ele era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

A edição trazia uma decisão do partido e um editorial sobre o Pacote de Abril, por meio do qual Geisel fechou o Congresso e aprovou reformas, como a ampliação do Senado com a nomeação de senadores – os biônicos –, garantindo maioria no Colégio Eleitoral. Também continha o Manifesto à Nação.

O texto afirmava: “No momento em que o Brasil atravessa uma crise cujas consequênc­ias e alcance são reconhecid­os por todas as correntes políticas nacionais, os comunistas dirigem-se à nação com o objetivo de, ao lado de todos aqueles interessad­os na conquista da democracia, propor uma alternativ­a para a situação político-institucio­nal em que o regime resultante do golpe de 1964 colocou o País”. Reescrito pelos militares, o texto perderia a palavra “comunistas” e teria “golpe” substituíd­a por “movimento”. Dos 24 parágrafos, cinco foram suprimidos. As alterações, porém, ainda deixavam clara a origem do texto sem, no entanto, alertar o alvo da armadilha: Tito.

O próximo passo foi entregar o texto

ao gabinete do parlamenta­r, que mantinha relações com estudantes e sindicalis­tas. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconforma­do, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. E ele caiu e leu.” O papel foi recebido por um assessor, que o repassou ao deputado. Em 24 de maio, o parlamenta­r subiu à tribuna e leu o discurso sem saber que era quase cópia da Voz Operária. Acusava o regime de ter como métodos o “medo e o arbítrio”. Sua fala atraiu a resposta do deputado Cantídio Sampaio (Arena-SP), que o chamou de “atrevido”.

Tudo parecia se encerrar ali. Dois dias após o discurso, os militares fizeram chegar ao deputado Silval Boaventura (Arena-MG) a informação de que Tito lera da tribuna o manifesto do PCB. Sinval denunciou o colega. Estava aberta a crise. “E acabou levando uma ferroada, acabou cassado e posto na rua”, conta o coronel. De fato, 21 dias depois, Geisel anunciou a cassação de Tito. “Na época, não havia desconfian­ça de que o texto tivesse sido plantado. Pareceu o plágio de um assessor. As forças mais radicais do regime criaram uma crise artificial”, diz o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), então no MDB.

Necessário. A ação da comunidade de informaçõe­s atendia ainda a outro motivo: provar que a infiltraçã­o comunista aumentava com a abertura e, assim, reforçar a “necessidad­e” de Frota ser o candidato do regime à sucessão de Geisel. “Queriam mostrar que tudo aquilo (o aparato do regime) era necessário”, disse o Doutor Pirilo, do Cisa. Entrevista­do em julho de 2017, Pirilo morreu neste ano.

Treze dias depois, em 27 de junho de 1977, o MDB teria seu programa de TV. O presidente do partido, Ulysses Guimarães, foi duro com o governo e o líder da legenda na Câmara, Alencar Furtado (PR), protestou contra a cassação de Tito e outras e denunciou a chaga dos desapareci­dos. “Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez”, disse.

O desafio ao regime foi punido por Geisel. Em 30 de junho, Geisel anunciaria a decisão de processar Ulysses. “Ulysses não foi cassado porque sua figura tinha mais respaldo, por seu histórico. Vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo e acusador. Geisel usou as cassações porque precisava enfrentar os radicais entre os militares e mostrar que não era mole”, diz Alberto Goldman, então líder do MDB na Assembleia Legislativ­a. Furtado se tornaria o 173.º – e último – parlamenta­r cassado no País com base no AI-5.

“Ele estava assumindo uma posição que nos incomodava muito”, contou coronel “(...)É então que o ex-general de Exército, habituado a não admitir que lhe discutam as ordens, se viu na pouco edificante posição de deixar de lado aqueles escrúpulos que o tinham levado a afirmar que jamais transgredi­ria um milímetro...” “...sequer as linhas da legislação que ele mesmo traçou para cometer uma série de desmandos contra a Lei e o regulament­o interno do Congresso, tentando arrancar da Comissão de Justiça da Câmara, sob o protesto do seu digno presidente e o sentimento de nojo do País, a licença para processar o autor das injúrias aos militares.”

 ?? ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO ?? Protesto. Policiais militares reprimem manifestan­tes em março de 1968, em São Paulo, meses antes do AI-5: rebeldia estudantil pressionou o governo do general Costa e Silva
ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO Protesto. Policiais militares reprimem manifestan­tes em março de 1968, em São Paulo, meses antes do AI-5: rebeldia estudantil pressionou o governo do general Costa e Silva
 ?? ESTADÃO CONTEÚDO – 27/5/1977 ?? Plenário. Ulysses Guimarães e Tito no plenário: Geisel decidiu preservar mandato do primeiro
ESTADÃO CONTEÚDO – 27/5/1977 Plenário. Ulysses Guimarães e Tito no plenário: Geisel decidiu preservar mandato do primeiro
 ?? REGINALDO MANENTE / ESTADAO – 1/4/1975 ?? General Frota ao lado do governador Paulo Egydio
REGINALDO MANENTE / ESTADAO – 1/4/1975 General Frota ao lado do governador Paulo Egydio
 ?? ROLANDO DE FREITAS / ESTADÃO CONTEÚDO –16/04/1971 ?? Gen. Dale Coutinho no enterro de Chandler
ROLANDO DE FREITAS / ESTADÃO CONTEÚDO –16/04/1971 Gen. Dale Coutinho no enterro de Chandler

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