O Estado de S. Paulo

A cor de um trauma

Retrospect­iva de Rosana Paulino na Pinacoteca expõe drama do racismo

- Antonio Gonçalves Filho

Rosana Paulino, uma artista hoje internacio­nalmente reconhecid­a, com obras no acervo de museus estrangeir­os e exposições em vários países europeus e africanos, lutou muito para conquistar esse espaço e comemorar 25 anos de carreira com uma retrospect­iva na Pinacoteca do Estado, aberta ontem, 8. Nascida numa família sem posses, cresceu observando a mãe bordadeira, brincando com bonecas loiras de braços e pernas decepados que ganhava de presente de famílias brancas e contando histórias bíblicas para a avó, que não sabia ler. Sua produção artística reflete essa história pessoal, que representa também a história social do negro no Brasil. É assim que Rosana Paulino: A Costura da Memória, que ocupa três salas do primeiro andar da Pinacoteca, evolui de uma exposição artística para mostra histórica. Tudo nela é rigorosame­nte verdadeiro, partindo da experiênci­a da artista paulistana para uma abordagem artística e política das marcas deixadas pela escravidão.

A mostra, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery, tem 140 obras produzidas entre 1993 e 2018, de desenhos e gravuras até esculturas e instalaçõe­s, todas elas tratando criticamen­te da chamada “democracia racial” brasileira. Já na primeira sala destacam-se duas obras conhecidas de Rosana Paulino, Parede da Memória, instalação de 1994, e Bastidores (1997). Em ambos os casos, a violência do colonizado­r branco e a supressão da identidade dos afrodescen­dentes colocam o espectador diante do silêncio imposto ao negro por uma sociedade intolerant­e, legado da colonizaçã­o portuguesa.

No ano passado, aliás, disposto a uma autocrític­a, Portugal importou uma exposição da artista, Atlântico Vermelho, sobre as consequênc­ias do expansioni­smo europeu que resultou no genocídio de sociedades ameríndias e no tráfico negreiro entre a África e as Américas. Rosana, doutora em artes pela ECA/USP e formada em gravura pelo London Print Studio, esteve nessa e outras exposições internacio­nais para falar de sua experiênci­a e de obras que estão agora na retrospect­iva da Pinacoteca. “Mesmo lá são os mais velhos que ainda discutem essa questão racial”, observa, revelando que o curador da mostra portuguesa, Antonio Pinto Ribeiro, professor da Universida­de de Coimbra com 62 anos, filho de um militar, focava nos “miúdos” (crianças) ao organizar a exposição lisboeta.

“Rosana toma o problema do racismo para si”, diz o curador de sua retrospect­iva Pedro Nery, apontando as serigrafia­s da instalação Parede da Memória, que reproduz figuras do álbum familiar da artista (11 imagens que se desdobram em 1.500 peças) com seres humilhados por uma elite obcecada em “branquear” o País. O desprezo vil pelo negro é também representa­do em séries como Bastidores, que usa bastidores de bordado com imagens de negras costuradas nos olhos e na boca.

Mesmo que os negros hoje frequentem universida­des, o apartheid social continua existindo, defende Rosana. “A reação a essa conquista da escolarida­de aparece agora quando se vê pichações como ‘voltem para a senzala’ nas paredes dessas mesmas universida­des”, diz. “Voltamos, enfim, ao tempo do cientista suíço Louis Agassiz”, ironiza a artista. Em tempo: Agassiz veio ao Brasil em 1865 e concluiu que o negro era “inferior” e “incapaz de se civilizar”. Tristes trópicos.

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FOTOS TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
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Histórica. Rosana e obras que contam a saga dos negros no País, da colônia aos tempos atuais

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