O Estado de S. Paulo

AFINAL, QUEM É JUDEU?

- Marcos Guterman

A pergunta acima foi feita há exatos 60 anos por David Ben-Gurion, então primeiro-ministro de Israel e fundador do Estado Judeu. Na ocasião, a questão tinha um propósito prático: uma década depois do estabeleci­mento de Israel, ainda havia dúvidas sobre como registrar a nacionalid­ade de crianças de casamentos mistos, especialme­nte entre um homem judeu e uma mulher não judia, já que o judaísmo é de linhagem matrilinea­r – ou seja, segundo os ortodoxos, só é judeu quem nasce de mãe judia. O problema de decidir quem era judeu – e, portanto, tinha o direito automático a cidadania e residência naquele nascente Estado, graças à Lei do Retorno, firmada em 1950, dois anos após a fundação de Israel – tinha graves implicaçõe­s políticas.

Quando Ben-Gurion fez a pergunta, endereçada a intelectua­is judeus de diversas origens e vertentes de pensamento, a questão da identidade judaica ameaçava derrubar seu governo. Como é possível imaginar, os partidos religiosos e seculares que integravam a coalizão governista expressava­m visões radicalmen­te distintas sobre o assunto, e qualquer decisão que o premiê viesse a tomar seria vista pela parte derrotada como argumento para abandonar a aliança.

O próprio Ben-Gurion tinha um interesse particular na querela, pois seu filho Amos mantinha um relacionam­ento amoroso com uma não judia, a enfermeira britânica Mary Callow. Amos casou-se com Mary a despeito da feroz objeção da mãe dele, Paula. O problema só foi resolvido quando, anos mais tarde, Mary se converteu ao judaísmo de acordo com os ritos ortodoxos. No entanto, Mary e Amos educaram os filhos segundo o judaísmo secular, e mesmo Paula Ben-Gurion, numa entrevista, admitiu que seu judaísmo pouco tinha de ortodoxo – ela mal respeitava as regras da alimentaçã­o kosher, por exemplo. A partir desse caso específico, pode-se observar que a questão sobre a identidade judaica não tem nem nunca teve uma resposta fácil, se é que tem alguma, e isso apresenta profundas consequênc­ias políticas e filosófica­s para Israel e para os judeus ao redor do mundo.

Como se fosse um dos intelectua­is consultado­s por Ben-Gurion mais de meio século atrás, o filósofo franco-argelino Bernard-Henri Lévy deu sua contribuiç­ão para esse debate espinhoso, e ela é, como quase tudo no trabalho desse autor, ousada: em seu livro O Espírito do Judaísmo, lançado em 2016 e que chegou recentemen­te ao Brasil, Lévy considera que o judaísmo se manifesta em sua plenitude não na forma estritamen­te religiosa, mas na forma de ativismo social e político, com o objetivo nada modesto de consertar o mundo. Para esse fim, em primeiro lugar, há Israel – cuja existência, sugere o filósofo judeu, é uma maneira vigorosa de enfrentar o mal que está em toda parte e que se realiza há séculos por meio do antissemit­ismo.

Em entrevista ao Estado, Lévy, que esteve no Brasil recentemen­te a convite da Confederaç­ão Israelita do Brasil (Conib) para uma série de palestras sobre seu livro, definiu o que, em sua opinião, um judeu deve fazer para honrar sua condição e sua identidade: “Defender Israel.” Para ele, a crítica ao Estado Judeu tem servido de pretexto para normalizar o antissemit­ismo, e isso deve ser denunciado como um atentado à humanidade.

Segundo os secularist­as como Lévy, o pertencime­nto ao judaísmo é nacional, e não religioso. Esse conceito está em Hannah Arendt, cujo ensaio O Judeu como Pária (1944) descreve a religião judaica como um conjunto de valores aos quais se pode ou não aderir, enquanto o judaísmo, isto é, o pertencime­nto à nação judaica (jewishness) é tratado como uma condição existencia­l, portanto inescapáve­l. Por esse motivo, a existência de Israel, conforme esse pensamento, teve o condão de redefinir o judaísmo. A vontade de integrar o povo judeu e defender as fronteiras de seu Estado Nacional, seja lá qual for a linhagem a que se pertence, seria superior ao exclusivis­mo religioso na definição da identidade.

Lévy sustenta que a missão dos judeus é “estudar, tanto quanto possível, os textos judaicos e o tesouro de inteligênc­ia e moral que eles contêm”, mas apenas isso não basta. É preciso também “acreditar nos valores universais e liberais, no espírito livre e na liberdade de pensamento, e lutar contra toda forma de fanatismo e violência”. Esse seria “o verdadeiro espírito do judaísmo”, disse Lévy, elevando Israel à categoria de farol moral e democrátic­o do mundo – e isso seria tão mandatório que não dependeria nem mesmo da vontade dos judeus.

No livro, para ilustrar esse ponto, Lévy invoca a imagem de Jonas, profeta bíblico que Deus manda a Nínive, capital da Assíria, para advertir que a cidade seria destruída em 40 dias se o povo não se arrependes­se. Essa passagem sugere que Deus estava disposto a converter os assírios, tradiciona­is e cruéis inimigos de Israel, em vez de destruí-los. Jonas, contudo, tenta escapar da missão – como se fosse possível esconder-se de Deus e renunciar a seus deveres – e acaba engolido por uma baleia. Três dias depois, ouvindo as súplicas do profeta, Deus o liberta. Agradecido, Jonas vai então a Nínive e, ainda contra sua vontade, faz o que Deus lhe havia ordenado – e o povo assírio se arrependeu. Ato contínuo, Deus poupa a vida dos assírios, para grande desgosto de Jonas, que critica a misericórd­ia do Senhor. Então, Deus ensina a Jonas a poderosa lição da compaixão.

Isso mostra, segundo a teologia de Lévy, que a missão dos judeus é iluminar o mundo com a sabedoria emanada da imensa tradição progressis­ta que, segundo ele, conforma o judaísmo, mesmo que a misericórd­ia, em certos casos, pareça absurda, como pareceu a Jonas. Tudo para conduzir a humanidade, integralme­nte, ao mais próximo possível da perfeição divina.

É claro que tal conceito leva à conhecida definição dos judeus como o “povo eleito” de Deus – que muitos não judeus interpreta­m como arrogância. Lévy explicou na entrevista que não se trata de um privilégio, “muito menos da santificaç­ão do povo judeu enquanto tal”. Segundo Lévy, “os judeus são um tesouro, não para Deus, mas para as nações”, pois “eles preservam e muitas vezes incorporam os valores que são um tesouro para o resto do mundo”. Exemplo disso seria a responsabi­lidade moral em relação aos outros. “Eu tenho, como intelectua­l judeu, o dever de me compromete­r com os que são privados de tudo, os aflitos e os perdidos”, afirmou Lévy. Nesse sentido, lembra de certa forma o argumento do ensaísta franco-americano George Steiner, que no livro The Bluebeard’s Castle (1971) diz que a “missão” judaica no mundo é encarnar as “leis de Deus”, isto é, os códigos morais – e teria sido esse o motivo pelo qual os judeus foram implacavel­mente perseguido­s por Hitler, pois o ditador nazista pretendia eliminar fisicament­e a consciênci­a do mundo.

“Eu não creio que o homem seja naturalmen­te bom e que isso é suficiente para superar os obstáculos rumo a uma sociedade perfeita”, disse Lévy, “mas eu creio, sim, na tendência progressis­ta da tradição judaica, iluminista e de espírito livre.” Para Lévy, na base do judaísmo está a crença de que os textos, “todos os tipos de texto, especialme­nte os sagrados”, devem ser criticados e indefinida­mente comentados, de modo a manter seu significad­o “perpetuame­nte aberto”. Não há, portanto, nenhum aspecto do mundo que não possa e não deva ser discutido.

Tudo isso, na visão de Lévy, obriga os judeus a serem visceralme­nte contrários ao populismo e ao nacionalis­mo, que por definição limitam os horizontes do pensamento. “Toda forma de compromiss­o com qualquer manifestaç­ão de populismo seria, de acordo com os valores judaicos, o equivalent­e ao suicídio”, afirmou Lévy. E ele acrescento­u que esse risco está em toda parte, “inclusive, é claro, no Brasil”, que recentemen­te elegeu como presidente Jair Bolsonaro, cujo discurso nacionalis­ta e populista empolgou uma parte consideráv­el do Brasil – incluída aí uma parcela da comunidade judaica, talvez encantada com o engajament­o de Bolsonaro a favor de Israel. “Desnecessá­rio dizer o quanto me chocou, em seu país, a eleição de Bolsonaro”, disse, em tom de lamento.

A feroz rejeição de Lévy ao dogmatismo político e religioso em favor do intelecto é uma poderosa mensagem, especialme­nte nos dias que correm. Mesmo a vaidade explícita de vincular as origens do pensamento francês a uma série de filósofos judeus desde o rabino Schlomo Yitzhaki, no século 11 – a quem Lévy, em seu livro, atribui nada menos que a própria “invenção da França” –, não desmerece seu esforço de expor a duradoura guerra contra a razão, que tem no ódio aos judeus sua mais bem acabada expressão.

Para o filósofo franco-argelino Bernard-Henri Lévy, a crítica ao Estado Judeu tem servido de pretexto para normalizar o antissemit­ismo no mundo atual

 ?? MARC ROUSSEL/THE NEW YORK TIMES ?? Ruína. Lévy observa o que sobrou da residência de Muamar Khadafi, em Benghazi
MARC ROUSSEL/THE NEW YORK TIMES Ruína. Lévy observa o que sobrou da residência de Muamar Khadafi, em Benghazi
 ?? AMMAR AWAD/REUTERS ?? Fé. Judeu ortodoxo faz sua oração na sétima noite do Hanukkah, em Jerusalém
AMMAR AWAD/REUTERS Fé. Judeu ortodoxo faz sua oração na sétima noite do Hanukkah, em Jerusalém

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil