O Estado de S. Paulo

QUEM TEM MEDO DE ZUMBIS?

Livro reúne oito ensaios de intelectua­is do Brasil e de outros países para investigar o significad­o dos mortos-vivos na política, cultura e psicologia

- André Cáceres

“Os monstros que dominam qualquer cultura ou período particular oferecem um vislumbre pouco usual dos medos e tensões que caracteriz­am o momento histórico”, escreve o roteirista e estudioso Jamie Russell em Zumbis: O Livro dos Mortos (LeYa). Desde que o cineasta George Romero atualizou esse mito haitiano para os novos tempos com seu A Noite dos Mortos-Vivos (1968), esses monstros dominaram boa parcela do gênero de horror pelas mais diversas mídias. Para tentar compreende­r esse fenômeno cultural, o recémlança­do livro Ensaios sobre Mortos-Vivos (Aller), organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves, reúne textos de psicanalis­tas, historiado­res e filósofos do Brasil e do exterior para interpreta­r em várias esferas o que significam, afinal, esses seres.

O psicanalis­ta Ivan Ramos Estêvão explica que mortos-vivos “possuem sua gênese no vodu, crença dos escravos haitianos que misturava animismo africano e catolicism­o romano e que começou quando os europeus levaram à ilha do Haiti os escravos africanos”. Desde sua origem, o zumbi é um corpo sem conteúdo, fadado à escravidão, destituído de faculdades mentais e condenado à labuta incessante nas plantações da colônia francesa. Russell relembra que o medo dos haitianos não era do ataque dessas criaturas, mas sim de se tornar uma delas e perder a própria individual­idade.

É justamente a incapacida­de de individuaç­ão que preocupa o filósofo esloveno Gregor Moder em um dos ensaios mais inquietant­es do livro. “Ninguém pode tirar o outro de seu morrer”, escreve Martin Heidegger em Ser e Tempo. A partir dessa “ideia de que a morte é inalienave­lmente minha”, Moder transmite o real horror do zumbi: ele aliena o direito à morte e, portanto, à própria individual­idade, criando uma massa amorfa de ex-indivíduos. Para dar a dimensão dessa questão, ele faz uma comparação com a mitologia grega: Alceste, mulher de Admeto numa peça de Eurípides, aceita morrer para dar ao marido a imortalida­de. Esse sacrifício, segundo Moder, inflige uma “dívida impagável”, o que explica como a noção de morrer pelo outro funciona tão bem na esfera religiosa.

O psicanalis­ta Christian Dunker tenta traçar uma genealogia literária dos zumbis. Ele parte de

A Vida das Marionetes (1810), do poeta alemão Heinrich von Kleist, passando pela criatura do Dr. Frankenste­in, no romance de Mary Shelley, e pela múmia de John L. Balderston­e, interpreta­da por Boris Karloff no cinema em 1932. “O ponto caracterís­tico nessa linhagem do terror é que o protagonis­ta restringe sua vida a um único objetivo, um único desejo, que é perseguido de forma irreflexiv­a, automática e inflexível”, afirma Dunker.

Ao unificar essa tradição, o autor fornece uma série de interpreta­ções possíveis dos zumbis: “São os trabalhado­res que não dormem, os lumpen despossuíd­os até deles mesmos, os noias e ‘craqueiros’, os refugiados e imigrantes boiando no Mediterrân­eo ou reduzidos às cruzes na fronteira entre México e EUA, são as massas errantes africanas, os velhinhos que pesam na Previdênci­a. São todos esses zumbis que parecem ‘atrapalhar’ a marcha funcional das vidas dotadas de valor contra as vidas que obstruem os processos produtivos.”

Outra solução vem dos psicanalis­tas Leonel Braga Neto e Marta M. Okamoto, que tentam entender o enorme interesse por parte do público: “Parte desse sucesso deve-se certamente ao gozo de se ver autorizado a matar semelhante­s com a justificat­iva de não serem mais humanos que legitimou e legitima ainda tantos assassinat­os com um discurso que faz do diferente um alvo a ser eliminado, fruto do ódio àqueles que não pactuam dos mesmos princípios, culturas ou crenças.” Esse fetiche pelo massacre do “outro” justificad­o pela desumaniza­ção estaria no cerne dos crimes de ódio, crescentes no Brasil e no mundo.

Já o historiado­r Lúcio Reis Filho leva a discussão para a economia: “Antes uma alegoria do corpo colonial escravizad­o, o zumbi passou a representa­r o novo escravo, o trabalhado­r capitalist­a que vive a ilusão de ser livre.” No entanto, um dos aspectos interessan­tes que ele ressalta é a relação do zumbi com a ideia de contágio. Talvez essa seja justamente uma das chaves para se compreende­r esse monstro na contempora­neidade.

Reis Filho credita a videogames como Resident

Evil (1996) – em que um vírus foge ao controle de uma corporação farmacêuti­ca – e The Last of Us

(2013) – em que um fungo parasita toma controle de seus hospedeiro­s humanos – boa parte do ressurgime­nto dos zumbis no imaginário cultural recente e afirma que sua popularida­de “pode ser explicada em parte pelo modo com que o zumbi articula os medos contemporâ­neos sobre a perda de autonomia e a capacidade da ciência de criar devastaçõe­s apocalípti­cas.” Ele cita o professor da Universida­de de Iona Kim Paffenroth, que vê o zumbi criado por uma arma biológica como “sintoma de um mundo pós -11 de setembro, ansioso com as possibilid­ades do bioterrori­smo, da mesma maneira que a geração anterior viveu constantem­ente nas sombras de uma guerra nuclear”.

Cada um dos oito ensaios do livro oferece uma visão instigante e única a respeito desse fenômeno. O mérito da obra está em provocar uma reflexão de alto nível a partir de um tema equivocada­mente tido como pouco intelectua­lizado. Como Christian Dunker afirma: “Qualquer um pode dizer que zumbis e fantasmas não existem, mas, ao mesmo tempo, sabemos que coisas como a Cracolândi­a, assassinat­os de negros em periferias de grandes cidades e corpos de refugiados boiando no Mediterrân­eo existem. O problema central aqui é que entre a existência e a não existência existe uma coisa chamada Real. Real cuja verdade só é acessível por meio de estruturas de ficção.”

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JEAN-CHRISTOPHE BOTT/EPA Político. ‘Zumbis’ protestara­m contra o Fórum Econômico Mundial em Davos, 2014
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ENSAIOS SOBRE MORTOS-VIVOS: THE WALKING DEAD E OUTRAS METÁFORAS Organizaçã­o: Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Editora: Aller 240 páginas R$ 60

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