A DISTOPIA DA COMPAIXÃO COMO FRAQUEZA
“Compartilhar é uma fraqueza, um segredo vergonhoso”. A frase desnuda A Parábola do Semeador, livro de Octavia Butler publicado pela primeira vez no Brasil pela Morro Branco. A obra, de 1993, relata uma década de 2020 destruída por crises ambientais, econômicas, sociais e políticas. O resultado é uma distopia, evidente pela construção de espaços narrativos possíveis a revelarem a realidade social como um pesadelo futurista. É oposto à utopia. O peso de um futuro distorcido e sua aproximação com a realidade se faz ainda maior pelo formato de diário em que foi concebida. O distópico no universo de Butler é evidente na medida em que a autora manipula e desenvolve elementos bastante presentes em 2018.
A frase que inicia essa resenha exemplifica isso. Butler manuseia a insensibilidade. Esboça o quão estranho, em 2027, é ser tocado pelo sofrimento alheio. O individualismo norte-americano, exacerbado pelo discurso neoliberal da década de 1980 e princípio da de 1990, facilita o crescimento da apatia entre os indivíduos, rompendo, progressivamente, com noções morais básicas de convívio social – no neoliberalismo, a conciliação é supostamente feita pelo mercado. A paisagem, descrita com minúcia, é uma Califórnia destruída, desértica, com criminalidade e mercado de armas incontroláveis, em que a polícia é uma prestadora de serviços: paga-se por ela ou faça você mesmo. Butler relata a disseminação de uma nova droga, o piro, que provoca enorme prazer, quase sexual, em contemplar o fogo. Por conseguinte, os incêndios criminosos se espalham.
Eis o mundo de Butler. Descrito sem esperanças, resta a cada um recolher-se em busca de sobrevivência. E, nessa paisagem desoladora, isso significa romper com a dignidade, tornar-se cada vez mais indiferente ao sofrimento alheio, fechar os olhos a tudo o que é cruel e naturalizar a barbárie, aproximando-se do sub-humano. Está-se à raias da loucura. Uma única frase resume: “Precisamos de nossa paranoia para continuarmos vivos.”
Sem ares de heroísmo fácil, Lauren Oya Olamina se afirma como protagonista. É igualmente paranoica ao ver o perigo por todos os lados a ponto de achar “loucura viver sem um muro como proteção”.
Ela não se apresenta como uma consciência acima dos demais personagens, capaz de superar toda e qualquer dificuldade por pura volição. Não deseja resgatar nada do passado, transformado apenas em relato. Seu olhar está adiante, com todas as confusões a moldarem sua personalidade adolescente. Ela é comum. Mas sofre de uma síndrome orgânica ilusória chamada de hiperempatia. As pessoas a padecerem deste mal são conhecidas como compartilhadoras e costumam sofrer mental e fisicamente com a dor do outro. Na distopia de Butler, a sensibilidade é uma doença.
Tanto a compaixão é sinônimo de fraqueza que a nova religião anunciada por Lauren Olamina distancia-se completamente deste propósito do amor universal, pregado desde sempre pelo cristianismo. É o desespero, temperado com paranoia, a desejar, antes de qualquer coisa, a transformação. Olamina, portanto, com sua seita, só consegue identificar Deus com o intangível, com a incerteza. Ao “amai-vos uns aos outros” tem-se como máxima da Semente da Terra, “Deus é mudança”. Para a religião que Olamina semeia pela Califórnia em busca de um lugar seguro, não é possível iniciar uma nova vida pelo amor. Talvez porque este amor cristão já é algo estranho aos seres humanos.
Tal como nos demais livros da autora – como no recém-lançado Despertar, sobre o retorno da humanidade a um planeta Terra novamente tornado habitável sob a custódia de uma raça alienígena evoluída –, a temática de gênero e raça não poderia estar ausente. Com violência fora de controle, Olamina convive inevitavelmente com vítimas de estupro. Mulheres nunca devem andar sozinhas. Simultaneamente, tem consciência de um insistente racismo a viver em uma sociedade cada vez mais miscigenada. Desse modo, anuncia a incapacidade social de superação do preconceito racial.
Em Kindred (1979), romance publicado no Brasil pela primeira vez em 2017, o racismo se faz evidente quando Butler nos proporciona a experiência de uma jovem que volta constantemente no tempo, tendo de viver como escrava no princípio do século 19. E, incrivelmente, muito do que vive ali se assemelha aos seus dias, nos anos 1970.
O próximo livro da autora a ser lançado deve ser A Parábola dos Talentos. Publicada originalmente em 1998, essa distopia descreve os EUA como um país destroçado, centrando-se na história de um candidato à Presidência e seus seguidores que perseguem e queimam quem julgam ser bruxos e ocultistas. O lema da campanha presidencial em questão é “Make America Great Again”, o mesmo utilizado por Donald Trump, em 2016. A distopia é hoje. Ítalo Calvino diria que “inventar em literatura é redescobrir palavras e histórias deixadas de lado pela memória coletiva e individual”. Butler, ao definir a compaixão como anormal, a necessidade de sobrevivência, em sua forma brutal de competitividade, exacerbando ainda mais o individualismo, definitivamente, redescobre histórias que se encontram presentes entre nós. Assim é que ela reaviva a memória chamando a atenção para o futuro. Assim é que alerta para o presente.
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É JORNALISTA, CIENTISTA SOCIAL E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Inédito no Brasil, romance de Octavia Butler imagina uma Califórnia em ruínas onde a sensibilidade é uma doença e o individualismo é a regra