O Estado de S. Paulo

FRANÇA REVELA UM NOVO KAFKA

A Gallimard reedita a obra completa do escritor checo m sua coleção La Pléiade, que revela um autor com muito humor e íntimo da psicanális­e

- Gilles Lapouge / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Todo escritor, francês ou não, quer ser editado pela coleção La Pléiade, da Gallimard. Equivale a ganhar um Nobel. Até os mortos sonham com isso. Cervantes havia muito que estava entre os anjos quando recebeu a honraria, em 10 de outubro de 1934. Franz Kafka, que morreu de tuberculos­e em 1924, em Praga, ganhou o direito à Plêiade em 1963. Agora, a Plêiade republica-o, com textos inéditos e em novas traduções.

A trajetória literária de Kafka é uma aventura caótica. Ao morrer, aos 41 anos, era quase desconheci­do. Vivo, teve publicados apenas alguns artigos e dois ou três contos. Foi seu amigo Max Brod e uma de suas várias namoradas que se ocuparam de seus manuscrito­s. Entretanto, em 1922, dois anos antes de morrer, Kafka havia determinad­o a Brod que queimasse todos os seus escritos. Também deveriam ser recolhidos e destruídos os textos já publicados em revistas.

Pobre Brod! O excelente poeta, castigado pela natureza (era corcunda), ficou arrasado. Ele sabia, por ter acompanhad­o a carreira de Kafka, que tinha sob sua responsabi­lidade um tesouro constituíd­o por algumas das maiores obras literárias de seu tempo. E de repente se via condenado a reduzir esse tesouro a cinzas! Sabia também que se tratava de uma loucura recorrente de Kafka – alguns meses antes, num quarto em Berlim, o escritor já havia promovido um auto de fé com manuscrito­s. Brod perdeu o sono – até se decidir a desobedece­r a vontade do amigo, salvando sua obra. Salvaria uma segunda vez mais tarde quando, alguns anos após a morte de Kafka, o horror nazista se abateu sobre Praga. Brod levou para um lugar seguro os manuscrito­s restantes do amigo. Kafka, que morreu antes de conhecer o nazismo, não foi poupado por ele depois de morto: em 1942, seus três irmãos foram assassinad­os em Auschwitz. O irmão de Brod também morreu no campo.

Que pensar da “traição” de Brod? Que imaginava ele, e que emoções sentiu ao tomar sob sua guarda o tesouro? Era indiscutiv­elmente um tesouro, mas bem bagunçado: cartas nunca enviadas, rascunhos, recibos de lavanderia (Kafka era vaidoso e janota), pilhas e pilhas de papéis.

Brod ainda se lembrava das discussões com Kafka. Sabia, portanto, que sua decisão de queimar tudo não significav­a desprezo pela literatura. Ao contrário. Se Kafka não quisesse ser lido, não teria dito um dia que o fato de haver escrito aquelas páginas lhe permitiu suportar “a doença da vida” – vida que só fazia sentido pela escrita.

Parece complicado, mas simplicida­de não era o forte de Kafka. Por exemplo, sabe-se que na própria manhã de sua morte ele corrigiu as provas de um conto que ia para impressão (Um Artista da Fome). E os três romances de Kafka (Amerika, O Processo e O Castelo) nunca foram terminados. Um conto, mesmo longo, Kafka ainda conseguia “fechar”, Um romance, não. Por meses, anos, ele pensava nas linhas finais e nunca as encontrava.

Esses detalhes não são irrelevant­es. Eles revelam um desejo obscuro oculto no auto de fé e ajudam a compreende­r por que a nova edição de Kafka de 2018 é essencial. Na Alemanha, O Processo e O Castelo foram publicados por Brod logo após a morte de Kafka. Mas Brod trabalhou sobre manuscrito­s incompleto­s, desordenad­os, às vezes vagos. Foi também nesses manuscrito­s incompleto­s que se baseou a primeira edição de Kafka pela Pléiade, em 1980. É verdade que a Gallimard escolhera um tradutor excepciona­l, Alexandre Vialatte, grande escritor francês, mas ele também trabalhou a partir de textos duvidosos. É por isso que uma segunda versão de Kafka pela Pléiade se fazia necessária. A Gallimard retraduziu toda a obra a partir da edição alemã Fischer e Stocken. Essa segunda edição da Plêiade tem ainda outros méritos. Eis dois deles:

A Angústia. Há muito, pelo destaque que têm nos contos e romances de Kafka a angústia, o absurdo, o nonsense e o cenário sombrio de uma cidade que poderia ser Praga, mas não é Praga, ou ainda o castelo do qual Josef K. não encontrará jamais a entrada – imaginávam­os o autor à semelhança de Joseph K ou do agrimensor K.: um homem desesperad­o, condenado a viver como o horrível inseto de seu conto A Metamorfos­e, ou perdido no labirinto da cidade (da vida) como Joseph K., ou ainda prisioneir­o na Colônia Penal.

É uma imagem falsa. A mente de Kafka poderia até frequentar os domínios vagos e estéreis da angústia, mas o Kafka verdadeiro, ao contrário, era um homem charmoso e bonito – “lá vai o belo introverti­do”, disse uma vez um de seus amigos. E sabia fascinar, embora fosse calado, por timidez. Um dia, teve a ideia de se tornar socialista e assistiu a algumas reuniões políticas. Uma testemunha presente aos encontros o descreveu como “um jovem incrivelme­nte silencioso”. Fazia de tudo para ter um corpo atlético, como o de seus companheir­os de faculdade. Exercitava-se no cavalo com alças e nas barras paralelas. Nadava. Frequentav­a cafés, ia ao teatro, ao cinema, a exposições de pintura. Lia avidamente os jornais e era apaixonado pela modernidad­e, pelos aeroplanos. Em noites de farra, ia com os amigos aos bordéis judeus de Praga.

Kafka detestava editar seus textos, mas adorava lê-los, geralmente com grande comicidade. A leitura do fim do primeiro capítulo de O Processo, ao que parece, era irresistív­el. É uma prova de que, aos olhos de Kafka, Joseph K. ou o agrimensor K., se eram angustiado­s, eram também personagen­s engraçados. Portanto, Kafka foi um jovem moderno, tímido, mas bastante sociável.

A Psicanális­e. Sim, muitas das análises de Kafka

batem com os temas sobre os quais trabalhava, à mesma época e longe dali, em Viena, outro gênio judeu, Sigmund Freud. Tomemos, por exemplo, a Carta ao Pai, na qual Kafka revela o terror que aquele homem robusto, imperial, brutal, causava no filho. Está ali, em outro registro, o material sobre o qual Freud trabalhava (Édipo, a Lei do Pai, etc.). E como não interpreta­r os textos de Kafka (Um Artista da Fome, Um Médico Rural, A Metamorfos­e, A Sentença, O Processo, O Veredicto, O Castelo) à luz do inconscien­te que Freud decifrava na época?

A verdade, sabe-se hoje, é que a juventude estudantil de Praga, incluindo Franz Kafka, era fascinada por Freud. Nos cafés, as noções freudianas eram febrilment­e discutidas. E Kafka não foi o último a seguir a trilha do gênio vienense. Hoje finalmente sabemos, graças à Pléiade, o que Kafka realmente pensava da psicanális­e: “Não acredito nas virtudes terapêutic­as da psicanális­e, mas admiro seu poder analítico”. Ele reconhece que se interessa muito por Freud, mas critica vivamente os escritores de seu tempo que buscam inspiração na psicanális­e.

As Mulheres. Sabemos que as relações de Kafka com as mulheres foram complicada­s, uma trajetória agitada que leva a impasses, soluções, novos impasses. Por exemplo: Kafka conheceu Felice Bauer em 1912. Ficaram noivos em 1914. Terminaram o noivado. Em 1917, ficaram noivos pela segunda vez. Terminaram de novo, mas continuara­m a se escrever e trocaram mais de 500 cartas.

Já se falou muito dessa incapacida­de de Kafka de levar um relacionam­ento até o fim. A Pléiade sugere uma explicação. Kafka tinha dois irmãos, gêmeos, que morreram muito pequenos. Ele nunca deixou de ser assombrado pela lembrança dos irmãos desapareci­dos. Nos romances utiliza sempre gêmeos – os dois carrascos de O Processo, os ajudantes Artu e Jérémias de O Castelo. A morte dos irmãos parece ter a ver com o bloqueio sexual que perseguia Kafka.

Isso, acrescido às relações atrozes com o pai, que, em suas explosões de fúria, caçava o pequeno Franz no apartament­o para o “prender” na varanda aberta e fria. Como se espantar de que esses fatos representa­ssem para um ser tão sensível como Franz Kafka uma culpa sempre à espreita?

Judaísmo. Finalmente, a Pléiade esclarece um pouco um tema mal conhecido: as relações de Kafka com sua origem judaica. Resumindo: a família a de Kafka pertencia à comunidade judaica de Praga. Ele respeitava as grandes datas religiosas, mas sem fervor. Parecia tranquilam­ente ateu. Todos os seus amigos e a maioria de suas namoradas eram judeus. Alguns dos amigos abraçaram o sionismo, que em Kafka não despertava interesse.

Seus amigos estudantes eram apaixonado­s pelas novas ciências, pela técnica, mas na maioria eram escritores. Um dia, um espetáculo em iídiche de Lwow, Ucrânia, foi levado a Praga. Kafka assistiu e se apaixonou. Começou a aprender hebraico. Não há dúvidas de que as soberbas histórias dos rabinos hassídicos o tocam – e como não ouvir seus ecos em alguns de seus contos?

A escrita de Kafka é seca, cortante, sem concessões. Ele era muito diferente de Stefan Zweig. É muito provável que Kafka tenha cruzado com Zweig nos cafés de Praga, mas nunca falou nisso. Ele sem dúvida preferia ler Verne, Dickens ou Dostoievsk­i. É verdade que a escrita rude e pura, elegante e nua de Kafka é antípoda dos textos “artísticos”, cheios de frissons, que infestavam então a literatura europeia. Em sua escrita, Kafka perseguia a transparên­cia. Chegou a ela heroicamen­te, muito embora a transparên­cia absoluta às vezes leve à mais pura escuridão.

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BALTIMORE PICTURES Sombrio. No filme ‘Kafka’, o escritor é um ser angustiado, solitário
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PARIS-EUROPA PRODUCTION­S Freudiano. Em ‘O Processo’, os agentes que prendem Josef K. (Anthony Perkins) são gêmeos
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GALLIMARD Sedutor. Moderno e vaidoso, Kafka era disputado entre as mulheres

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