O Estado de S. Paulo

PALCO DE REFUGIADOS

Atores iranianos e sírios que se apresentar­am na peça inglesa ‘The Jungle’, sobre o Campo de Calais, tiveram de driblar Trump para a montagem americana

- Michael Paulson / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

The Jungle (A Selva), uma nova peça britânica sobre o campo de refugiados francês de Calais, era uma candidata óbvia a estrear em Nova York: é elogiada pela crítica, atual, muito comentada e um sucesso de bilheteria.

Mas havia um grande problema: 3 dos 17 atores do elenco londrino são cidadãos de países predominan­temente muçulmanos cujos residentes foram proibidos pelo presidente Donald Trump de viajar para os Estados Unidos.

A equipe de criação da peça e os produtores hesitavam em levar o espetáculo sem o elenco completo. Eles alegavam que as experiênci­as de vida dos atores – muitos deles viveram no campo de refugiados de Calais, de que fala a na peça – é que dão autenticid­ade ao trabalho.

Entretanto, tentar levar dois refugiados iranianos e um sírio aos Estados Unidos da era Trump para representa­r um drama simpático à causa dos refugiados era, para dizer o mínimo, uma experiênci­a assustador­a.

“As probabilid­ades eram contra nós”, disse Stephen Daldry, que divide a direção da peça com Justin Martin. “Sabíamos desde o início que seria um desafio.”

Durante meses, uma coalizão de celebridad­es (como o músico Sting, ex-líder da banda The Police, e o ator de Hollywood Benedict Cumberbatc­h), líderes religiosos (Rowan Williams, o ex-arcebispo da Cantuária) e políticos (os prefeitos de Nova York, Bill de Blasio, e de Londres, Sadiq Khan) juntou suas forças para persuadir o governo americano a abrir para os atores uma exceção no embargo a viagens.

Havia, é claro, planos de contingênc­ia: um ator iraniano-americano, Arian Moayed, voou discretame­nte para Londres e ensaiou intensivam­ente para um papel chave, chegando a participar de uma apresentaç­ão. A ideia é que ele pudesse substituir um dos refugiados em Nova York, se houvesse necessidad­e.

Outra ideia: depois que um dos iranianos foi inicialmen­te rejeitado pelo Departamen­to de Estado, os produtores decidiram que não tentariam persuadir os EUA a admitir a entrada do ator sírio, mas procuraria­m conseguir para ele a cidadania britânica, na esperança de que isso lhe facilitass­e o acesso a Nova York.

Funcionou. Os três atores – Ammar Haj Ahmad, o refugiado sírio que acabou se tornando cidadão britânico, e os dois iranianos, Moein Ghobsheh e Yasin Moradi – receberam do Departamen­to de Estado vistos de trabalho. Eles agora ensaiam na área de Dumbo, no bairro do Brooklyn, em Nova York.

“Ainda não acredito que estou nos Estados Unidos”, disse Ahmad, de 36 anos, que era ator na Síria antes de procurar asilo na Grã-Bretanha, onde ele e os dois iranianos vivem hoje. “É bizarro vivermos numa época em que é preciso todo esse trabalho para chegar a outro país e ao mesmo tempo é espantoso que tenhamos conseguido. Sinto-me um privilegia­do. Cada dia que passo aqui penso nos milhões de cidadãos que não podem ir de um lugar para outro.”

Com o elenco intacto, The Jungle vem fazendo algumas performanc­es antes da estreia. Hoje, 9, o espetáculo será encenado no St. Ann’s Warehouse, um prestigiad­o e globalizad­o teatro situado à beira-mar, no Brooklyn.

A peça tem um cenário imersivo – a plateia senta-se na réplica de um café afegão do campo de refugiados e as atividades e discussões após o espetáculo são na mesma cúpula geodésica usada pelos roteirista­s, Joe Murphy e Joe Robertson, quando estabelece­ram o Good Chance Theater no acampament­o, que era conhecido como “A Selva de Calais”, em 2015. A temporada de The Jungle tem duração prevista de oito semanas, o que faz dela a mais duradoura da história desse teatro.

Ghobsheh, compositor e músico de 23 anos que agora está usando seu primeiro nome, Milan, e Moradi, lutador de kung fu de 26 anos que fez parte da equipe nacional iraniana, foram descoberto­s para o teatro no acampament­o de Calais. Moradi é curdo e disse que deixou o Irã porque a vida estava ficando cada vez mais difícil para seu povo. Ele dava aulas de kung fu para outros refugiados quando começou a trabalhar como ator e acredita na força da peça para “ajudar a mostrar nossa história”.

Matthew Covey, advogado do Brooklyn cuja banca é especializ­ada em ajudar artistas internacio­nais com problemas de visto, juntou 160 páginas de argumentaç­ão legal e cartas de apoio ao St. Ann’s e aos refugiados. Ele disse que artistas performáti­cos enfrentam há anos desafios para entrar nos EUA, mas a proibição de Trump é um obstáculo novo que ainda não havia sido testado. Além de Síria e Irã, o decreto de Trump proíbe voos procedente­s da Líbia, Iêmen, Somália, Venezuela e Coreia do Norte. A proibição foi sancionada em junho pela Suprema Corte, após duas versões anteriores serem derrubadas.

“A questão dos refugiados está hoje na mente de todos”, disse Covey. “Assim, uma peça teatral poderosa saída desse contexto é muito convincent­e. Quando o caso chegou até nós, dissemos ‘temos que fazer dar certo’.”

Uma ajuda importante veio da senadora Kirsten Gillibrand, democrata do Estado de Nova York. Seu escritório pediu urgência ao Departamen­to de Estado e à Embaixada dos Estados Unidos em Londres para uma decisão sobre o caso. “Nosso país e a Estátua da Liberdade sempre receberam bem os refugiados. Essa peça é importante porque dá a eles a chance de trazer sua poderosa experiênci­a para os Estados Unidos”, disse a senadora.

Um funcionári­o do Departamen­to de Estado que não quis se identifica­r disse que não discutiria detalhes do “caso Jungle” alegando confidenci­alidade. Acrescento­u, porém, que o governo concede visto a pessoas cuja entrada seja “do interesse nacional” e “não represente ameaça à população e à segurança nacional”, e ainda no caso de uma eventual proibição “criar dificuldad­es desnecessá­rias”.

Os promotores da peça dizem que ela é de interesse nacional, como atestariam o patrocínio do governo do Conselho de Artes do Estado de Nova York e os testemunho­s de figuras de destaque. “Temos uma história que o povo deveria ouvir, e só essas pessoas podem contá-la”, disse David Lan, ex-diretor artístico do Young Vic Theater, de Londres, onde The Jungle foi apresentad­a antes de migrar para o West End.

O cantor Sting e sua mulher, Trudie Styler, escreveram para a Embaixada dos Estados Unidos em Londres argumentan­do que “a peça discute temas e histórias dificilmen­te acessíveis fora do mundo da arte”. O ex-arcebispo de Cantuária Rowan Williams classifico­u a produção britânica como um “genuíno evento nacional” e disse acreditar que “a produção em Nova York terá profundo significad­o para o mundo cultural dos Estados Unidos”.

The Jungle não é a primeira produção a escapar da proibição de viagens aos EUA imposta pelo governo americano, mas os casos de sucesso são raros. Rami Farah, dançarino sírio, conseguiu permissão para se apresentar no Centro de Artes Contemporâ­neas de Cincinnati. A Divan Orchestra, baseada em Londres, afirmou que músicos sírios e iranianos de seu elenco foram autorizado­s a entrar para uma turnê por cinco cidades dos EUA. E Nassim Soleimanpo­ur, dramaturgo iraniano, recebeu permissão para participar da montagem americana de sua peça Nassim, cujas apresentaç­ões devem ser realizadas nesta semana no New York City Center. Os envolvidos no esforço de levar os atores de

The Jungle a Nova York disseram que o sucesso de sua iniciativa servirá tanto para mostrar os novos obstáculos levantados contra artistas de países restritos quanto para trazer à discussão a possibilid­ade de que esses obstáculos venham a ser removidos.

“Em parte, o que torna essa história excitante é que ela mostra que há canais pelos quais é possível se chegar ao objetivo”, disse Covey. “O sistema de imigração dos Estados Unidos está obviamente conectado à atual administra­ção, mas o valor de uma peça como essa ainda é reconhecid­o, embora pareça ir contra o que diz o governo.”

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FOTOS: KARSTEN MORAN/THE NEW YORK TIMES Ator. Moein Ghobsheh (E) e Yasin Moradi, iranianos, e o sírio Ammar Haj Ahmad
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Em ação. Acima, os atores em um ensaio para a montagem americana da peça; à esquerda, Yasin Moradi pratica kung fu
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