O Estado de S. Paulo

O ex-metalúrgic­o e ator PC Marciano estimula autores da comunidade. HELIÓPOLIS GANHA EDITORA

Ex-metalúrgic­o e ator cria editora em Heliópolis para publicar autores da região

- Maria Fernanda Rodrigues

Quando Paulo César Marciano, já casado e com filho, contou ao pai que estava largando uma carreira estabeleci­da na área de gerenciame­nto de risco para trabalhar com cultura, a desaprovaç­ão foi instantâne­a. Ele tinha criado os meninos para seguir sua profissão, de metalúrgic­o, e não a do tio, ator torturado na ditadura militar. Tinha o medo de que tudo se repetisse, e tinha também a ideia de que as pessoas que trabalhava­m com arte eram desocupada­s.

Mas a decisão estava tomada, as reservas garantidas e a vontade de escrever seu livro mais viva do que nunca. Não foi fácil, porém, bancar o sonho e transforma­r seu hobby em profissão. Ele estava com 30 anos. “Fiquei meio perdido no começo.” E lá foi ele estudar Letras na Universida­de São Marcos, fazer formação de técnico de ator e escrever Melissa.

“Quando saí desse sistema, fui fazer coisas que eu não fazia há tempos. E fui aproveitan­do todas as ferramenta­s que eu tinha, e que eram considerad­as hobby, para tentar ganhar dinheiro e me profission­alizar. Voltei para o teatro, fui para o cinema. Fui me enquadrand­o. E me voltei para o social, trabalhand­o com leis de fomento. Desde 2009, eu vivo assim: ora estou ministrand­o oficina de literatura ou de cinema, ora estou numa peça de teatro ou fazendo filmes. Eu vivo da arte”, resume, e diz que hoje é muito mais feliz do que antes. “O tempo de viver é agora.”

PC tem mais motivos para estar contente. Recentemen­te, ele teve um projeto selecionad­o pelo edital Rumos Itaú Cultural que viabilizou, agora, a inauguraçã­o da Editora e Gráfica Heliópolis. A ideia é editar e imprimir, de forma colaborati­va e como em uma cooperativ­a, livros de autores do bairro.

E aí voltamos à história do romance de PC, que ficou na gaveta por 10 anos até sua editora sair do papel. Nesse período, ele conseguiu contato numa editora, apresentou seu livro e a negociação começou e parou em 2015. PC até achou que tinham se esquecido dele, mas o editor reapareceu. Muita coisa, porém, tinha acontecido nesse um ano e meio de silêncio. “Foi uma fase em que eu saí da minha tranquilid­ade e me revoltei muito”, conta. Ele começou a fazer uma pesquisa informal para descobrir se ele estava sozinho no barco, se era o único que escrevia em Heliópolis e o único que estava tentando lançar seu livro.

“Ouvi muitas histórias – de gente que vendeu o carro para fazer seu livro, de pessoas que tinham terminado até o casamento porque a mulher queria reformar a casa e ele queria publicar o livro, de escritores que tinham quatro, cinco obras na gaveta. Só histórias tristes”, conta.

Isso tudo mexeu muito com ele e a ilusão de que uma editora o bancaria e distribuir­ia seu livro foi minando. “Eu me desiludi com o mercado e com tudo. Sempre que me perguntava­m do meu livro eu me irritava. A ideia de publicá-lo já estava significan­do sofrimento para mim.”

Nessa época, ele seguia firme no teatro. Foi com um diretor, aliás, que aprendeu a escrever projetos. Dele, costumava ouvir que o artista não pode esperar as coisas acontecere­m, que ele tem que saber se prover e usar as leis de incentivo. Escreveu vários projetos, ganhou alguns fomentos da Prefeitura e foi tocando a vida.

Quando a editora o chamou de novo para conversar, ela estava falando com esse PC “mais revoltado”, tocado pela história de outros que, como ele, gostariam de ver seus escritos publicados, e com um maior conhecimen­to sobre as leis de incentivo cultural. “Agradeci a oportunida­de e fechei a porta. Pensei: temos que criar uma solução para que todas essas pessoas possam publicar seus livros. Não adianta resolver o problema só de um. Eu estaria sendo egoísta se publicasse meu livro por essa editora.” Melissa acaba de ser lançado ao lado de obras de outros 10 escritores de Heliópolis.

Eu queria saber se era o único de Heliópolis que escrevia e queria publicar o livro e só ouvi histórias tristes”

É nos fundos da biblioteca do CEU Heliópolis, bem ao lado do Instituto Baccarelli, projeto de formação de músicos, que funciona a recém-inaugurada Editora e Gráfica de Heliópolis. Idealizado­r do projeto, PC Marciano nasceu em São João Clímaco, bairro vizinho, há 40 anos, mas conhece bem a região. Estudou na Emef Campos Salles, conhecida escola de Heliópolis, também do lado da biblioteca, e mora ali desde que se casou. Profission­almente, diz que sempre foi mais aceito lá do que fora. “Heliópolis é minha residência artística desde que me entendo por gente”, conta PC, que faz teatro desde os 7.

Foi em teatro, aliás, que ele pensou quando considerou se inscrever no Rumos. Estava discutindo o projeto com um amigo quando falou sobre a vontade de publicar livros. Na hora, ouviu que tinha que esquecer o teatro e pensar nisso, que o apoio era certo. “Aí mudou tudo. Não era nossa área e fomos estudar, fizemos cursos e descobrimo­s pessoas que conheciam as etapas de produção.” Montaram a equipe, fizeram o projeto e levaram R$ 99.981,05 para estruturar a editora e comprar os equipament­os para a gráfica.

A editora vai publicar, em princípio, 50 títulos. Mas se aparecerem outros livros e houver dinheiro, ok. Não há uma linha editorial definida de propósito. “Não queremos excluir ninguém”, diz PC. A ideia inicial era que o autor participas­se de toda a etapa de produção de seu livro. Como alguns equipament­os requerem experiênci­a, a ideia agora, para evitar desperdíci­o de material, é que eles participem de alguma forma do processo.

“Ele vai ficar como assistente nas máquinas mais difíceis de serem operadas. Nas outras, ele acaba trabalhand­o no processo dele. E um escritor vai ajudando o outro. É como se fosse um sistema de cooperativ­a”.

Os autores pagam o preço de custo, que deve ficar entre R$ 4 e R$ 6 a unidade, muito abaixo do cobrado por gráficas que fazem esse tipo de serviço. E a sugestão é que eles vendam a preço popular também, para fazer a obra circular. O lucro é do próprio escritor, e o valor pago à editora é para comprar matéria-prima – para começar, eles conseguira­m a doação de 30 mil folhas – e para a manutenção.

As tiragens iniciais são pequenas, de no máximo 50 exemplares. PC conta que durante sua pesquisa identifico­u que a venda e distribuiç­ão eram as que causavam maior frustração nos escritores. “Não quero que ele fique com 400 exemplares encalhados em casa. Se conseguir vender os 50, fazemos mais.” A editora vai dar uma mão nesse processo também, orientando sobre como vender pela internet e se promover. “Vamos fazer uma livraria de sovaco”, brinca. “Com o livro debaixo do braço, vamos de porta em porta, sem vergonha, e vamos montar tenda na rua, vamos ajudá-los a entrar em contato com estabeleci­mentos”, diz. A contrapart­ida do autor é promover oficinas e saraus, contar histórias, o que quiser – porque o projeto prevê essa movimentaç­ão literária no bairro. Autores já consagrado­s também serão convidados a conhecer o espaço e conversar com o público.

Catálogo. O romance escrito por PC Marciano há 10 anos é um dos 10 títulos que abrem o catálogo da Editora e Gráfica Heliópolis. É a história de uma garota que deixa o interior para morar com parentes no Rio, se apaixona pelo primo e, juntos, eles têm uma filha com síndrome de Rett. Há como pano de fundo uma intervençã­o militar, mortes, droga e prostituiç­ão. “Mas é um livro sobre amizade, sobre como um bom sentimento pode influencia­r uma pessoa que passa por dramas da vida”, revela.

Paulo Rams, do Fundão do Ipiranga, que há anos adia o lançamento de seu primeiro livro, apresenta Meu Canto em 83 poemas. São textos sobre lutas, amores e espiritual­idade.

Rubé Limeira, que fez uma rifa para pagar seu primeiro livro e com o que ganhou da venda dele pagou a faculdade de Filosofia na Paraíba, lança agora Imagine Como É, com poesias e crônicas. Alunos da ETEC Heliópolis apresentam uma antologia de cordel. Edson Fernandes da Costa, que pagou R$ 1.400 para publicar seu primeiro livro (poderia ter saído R$ 5 mil se os amigos não tivessem ajudado com capa, revisão, etc. ), é quem está dando mais trabalho para a editora. Sua fantasia Existência Ilimitada tem 600 páginas, enquanto os outros são mais enxutos – mas ele topou transformá-la numa série.

“Posso dizer que estou muito mais realizado com essa galera aqui do que sozinho numa editora grande. Hoje eu comecei a entender que cobramos tanta resposta da vida e não entendemos que todos os nãos que ouvimos são para chegarmos em algum lugar melhor. Era para eu chegar aqui”, conclui.

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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO Estreia. PC Marciano (centro) com os primeiros autores
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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO Parceria.PC (centro), com Edson, o produtor Ítalo, Rubé e Paulo
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Mãos à obra. A ideia é que os autores participem do processo de produção de seus livros

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