O Estado de S. Paulo

Fantasia perigosa

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Um cidadão minimament­e responsáve­l pela gestão de suas finanças pessoais sabe que uma queda repentina de suas receitas implica a revisão de suas despesas a fim de manter equilibrad­o o orçamento doméstico. Os assalariad­os, empreended­ores e profission­ais liberais ciosos de sua saúde financeira sabem que dinheiro não dá em árvore e, portanto, não é alvissarei­ro desdenhar do imperativo matemático.

A mesma regrinha básica – que se convencion­ou chamar de “responsabi­lidade fiscal” – que vale na esfera privada também vale na esfera pública. A diferença é tão somente a titularida­de e o montante dos recursos que se irão administra­r. No entanto, por alguma razão oculta, alguns administra­dores públicos acreditam na misteriosa propriedad­e germinativ­a do dinheiro. E pior: a crendice tem encontrado guarida no Poder Judiciário.

Uma série de decisões judiciais a favor de Estados endividado­s vem ameaçando não só o reequilíbr­io fiscal dos entes federativo­s, na medida em que retarda a adoção de medidas de ajuste, mas todo o esforço nacional voltado para o ajuste fiscal. Governador­es têm obtido liminares na Justiça tanto para suspender o pagamento de dívidas de seus Estados com a União como para contrair novos empréstimo­s no mercado financeiro, mesmo sem condições para tal, com garantia do Tesouro Nacional.

A chamada judicializ­ação das questões fiscais dos Estados é um dos estratagem­as de governador­es não muito dispostos a, antes de bater às portas da Justiça, fazer seus deveres de casa. A defesa enfática de revisões na Lei Complement­ar n.º 101/2000 – Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF) – é outro.

Há dias, governador­es eleitos defenderam a descarada ideia de rever pontos da lei que trouxe disciplina à gestão das finanças públicas em fórum do qual participou o presidente eleito Jair Bolsonaro. Ou seja, antes de assumirem seus cargos, os governador­es eleitos já se sentem à vontade para advogar a legalizaçã­o da irresponsa­bilidade fiscal (ver editorial Legalizar a irresponsa­bilidade?, publicado em

25/11/2018).

Entre os pedidos de “revisão” da Lei de Responsabi­lidade Fiscal estão a mudança do prazo de dois quadrimest­res para que os governos estaduais ajustem os orçamentos a fim de não violar o limite de 60% de gastos com a folha de pagamento, como manda a lei, e até a própria “flexibiliz­ação” desse limite.

A situação não é diferente no tocante aos municípios. A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complement­ar (PLP) 270/2016, de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA). O texto altera a Lei de Responsabi­lidade Fiscal para isentar de punições os prefeitos de cidades que tiverem redução de mais de 10% nos repasses do Fundo de Participaç­ão dos Municípios ou de royalties. O presidente Michel Temer precisa vetar esse projeto.

A ofensiva judicial levada a cabo, principalm­ente, por Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rondônia tem preocupado, com toda razão, a equipe econômica do futuro governo. O presidente eleito abriu um canal de diálogo com o Poder Judiciário para tentar sensibiliz­ar os juízes quanto aos impactos econômicos de suas decisões. É preciso ficar claro, de uma vez por todas, que a separação orçamentár­ia entre os mais diversos segmentos da administra­ção pública se dá, sobretudo, por razões de ordem prática, de conveniênc­ia administra­tiva. É única a fonte de recursos públicos: os contribuin­tes.

Quase duas décadas depois do advento da LRF, que trouxe inegáveis avanços para a higidez da gestão das contas públicas – e, como corolário, toda sorte de benefícios sociais –, há quem proponha uma volta ao passado. Na cabeça de alguns governante­s, vive-se hoje uma espécie de versão fantasiosa do federalism­o, na medida em que há Estados e municípios que só desejam os bônus na relação com a União, sem arcar com os ônus, inclusive políticos, que fazem parte de uma gestão responsáve­l. É uma fantasia sedutora, porém perigosa.

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