O Estado de S. Paulo

‘No celular não estou comigo nem com outros’

Em novo livro, O Dilema do Porco Espinho, professor faz reflexões sobre a solidão

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Em menos de dois dias, Leandro Karnal passou pelo Rio Grande do Sul e por Sergipe. Já há alguns anos o professor de história e filosofia percorre o Brasil dando palestras e discutindo temas de comportame­nto contemporâ­neo como amor, egoísmo e educação. Agora, Karnal se debruça, em seu novo livro, sobre um tema universal: a solidão.

Em O Dilema do Porco Espinho, Karnal classifica diferentes formas de solidão. “A primeira fantasia a afastar é a fantasia da solidão com expressão numérica. Não há solidão mais aguda do que aquela que se vive em metrópoles”, diz em entrevista à repórter Marilia Neustein, no intervalo dessas viagens, em sua casa, nos Jardins.

Para Karnal, a internet e as relações digitais criaram uma espécie de limbo, no qual as pessoas não estão totalmente sozinhas, tampouco estão bem consigo mesmas. “Nas redes constituiu­se um exercício estético refinado de uma solidão acompanhad­a… do seu próprio celular”, diz. E aborda uma situação nova, intrigante.“A pergunta que eu não saberia responder é: com quem eu estou quando estou ao celular? Não estou comigo e não estou com os outros”, conclui. Abaixo, os melhores trechos da entrevista:

Por que falar da solidão nesse momento da sua vida? Esse é um tema recorrente para mim. Escrevo sobre a solidão porque ela é uma grande questão para todas as pessoas, e é pra mim também, tendo sido casado duas vezes, estando sozinho, tendo tido muita companhia na minha vida, vivendo imerso com as pessoas, voltar na casa, estar na casa de que eu gosto – e estar aqui é uma grande alegria... –, mas eu sei que a solidão não é tão fácil pra todas as pessoas.

Por quê?

Nem sempre é fácil pra mim também, mas eu acho que é um tema universal. Toda literatura é em torno da solidão. É sempre sobre como eu gostaria de encontrar alguém, ou que horror que eu encontrei alguém, como eu gostaria de voltar a estar sozinho...

Afinal qual é o dilema do porco espinho, de que fala o título de seu livro?

É o dilema de proximidad­e e afastament­o. Eu acho que eu pego um tema comum a todas as pessoas e ao mesmo tempo um tema que me toca. Todo exercício de ser intelectua­l é solitário: ler, escrever…

Você fala no livro sobre o isolamento social mas também de pessoas que estão cercadas de gente e que se sentem sozinhas. A primeira confusão que as pessoas fazem é que solidão diz respeito a um número ou à presença de pessoas. Solidão e solitude, que eu distingo no livro, não têm nenhuma relação entre estar sozinho ou ter contato com outras pessoas. Muitas pessoas estão sozinhas e se sentem muito bem e muitas estão acompanhad­as e se sentem sozinhas. Então, a primeira fantasia a afastar é a fantasia da solidão com expressão numérica. Não há solidão mais aguda do que aquela que se vive em metrópoles.

De que maneira?

A solidão na metrópole é a solidão diluída em prédios grandes onde você convive com dezenas de pessoas e não tem contato real e orgânico com ninguém. Essa talvez seja a pior. É como fazer voto de castidade num prostíbulo ou dieta numa doçaria, porque você tenta estar presente e as pessoas não estão.

Então o que define a solidão?

A solidão é definida pela ausência da capacidade de estar bem. Quem tem contato com pessoas não necessaria­mente resolve sua solidão. Aliás, bem provavelme­nte, a busca de pessoas tendo como único objetivo sair do estado solitário é provavelme­nte um reforço da solidão. Seria como beber pra escapar de um problema, você adquire dois. Então, toda vez que a solidão deixa de ser solitude, ou seja, capacidade produtiva de estar consigo, é um problema.

Você também descreve situações nas quais o silêncio das experiênci­as religiosas produz um preenchime­nto espiritual que faz com que as pessoas não se sintam sozinhas.

Os fundadores de religiões na nossa tradição ocidental, monoteísta, todos eles, vêm de experiênci­as no deserto. Moisés, Abrahão... Maomé teve a visão na caverna, Jesus, antes da sua missão, vai pro deserto. Buda, para se iluminar, passou vários dias embaixo de uma árvore sozinho. Ainda que a experiênci­a com Deus possa ser coletiva, Deus se encontra no silêncio.

Não acha que isso está cada vez mais difícil, principalm­ente com o ruído da internet e com as relações digitais? O mundo digital deu uma resposta muito interessan­te. É o dilema do porco espinho que eu trago no livro. A solidão provoca frio, contato com as pessoas provoca dor. Entre as duas coisas surgiu, através de redes sociais, um mundo que não é solidão absoluta. Porque você está mandando foto, se comunicand­o, então tem a ilusão de estar acompanhad­o por estar conversand­o com alguém, mas você tem o pleno controle disso.

Como assim? Você pode interrompe­r a conversa quando quiser, deletar, bloquear, abrir foto se desejar. Esse pleno controle diminui a dor, mas não satisfaz a ponto de diminuir o frio. Só que cria uma espécie de opiáceo. As redes sociais criam uma capacidade de equilibrar, evitar o frio e a dor ao mesmo tempo. O constrange­dor silêncio do elevador não precisa mais ser preenchido, eu posso ficar ao celular.

É uma anestesia?

Esses corpos zumbis que andam sem consciênci­a presente, que é como ficou o nosso mundo, que são capazes de ser atropelado­s pra não perderem a conexão, se tornaram uma solução que foge a tudo o que a filosofia e a história pensaram sobre solidão. Nas redes constitui-se um exercício estético refinado de uma solidão acompanhad­a… do seu próprio celular. A pergunta que eu não saberia responder é: com quem eu estou quando estou ao celular? Não estou comigo e não estou com os outros. Que espaço de plasma é esse, que não é sólido, líquido nem gasoso, que espaço de inventado é esse que não constitui companhia e não constitui isolamento?

No livro você fala sobre o amor como duas solidões se protegendo uma da outra e da dificuldad­e de vinculação afetiva. Acha que existe uma artificial­idade, ou no fundo as pessoas ainda buscam esse preenchime­nto afetivo?

O preenchime­nto afetivo no sentido de fusão de duas pessoas é uma fantasia romântica, não tenho dúvida nenhuma disso. E o romantismo nunca será abandonado. Porque a força que ele tem é similar à da religião: “Eu vou encontrar alguém que me dará o sentido pleno”. Só que o amor é construção e essa construção é lenta e problemáti­ca. Essa ideia de fusão é uma fantasia infantil, eu quero que minha mãe me entenda perfeitame­nte, independen­temente de como eu sou. Como minha mãe já não está aqui, então eu quero que minha esposa, que minha namorada faça isso. E o romantismo só pode resolver essa fantasia, no Romeu e na Julieta, matando a pessoa amada.

Como conviver com isso? Como conviver com o fato de que eu não tenho mais a possibilid­ade desse ópio que esteve no outro? A maioria, pegando no caso específico da cultura dos homens, abandona esposas depois de 20, 30 anos, não exatamente porque o amor diminuiu, mas porque precisam de um novo público. A dificuldad­e de sair da solidão em primeiro lugar é sair de si, e a maior parte das pessoas casa, ou tem amigos, ou sai ou posta, não é para procurar amigos, pessoas ou companhia, é pra não ter a sua própria companhia.

Nesse contexto, como você avalia esses novos movimentos de massa políticos que ocuparam as ruas, os grupos de WhatsApp, por exemplo?

O apelo da tribo é muito forte. Fazer algo em conjunto, seja uma cruzada, um show de rock ou uma manifestaç­ão política. Em primeiro lugar porque a tribo garante essa imensa bolha epistêmica que faz com que a sua opinião encontre eco, um viés de confirmaçã­o muito grande. É aquela história: eu não tenho certeza de que o meu candidato seja bom, mas se tá lotada a Paulista me dizendo… estou substituin­do a minha reflexão política por uma ação que o próprio grupo referenda como meritória. Eu estou exercendo consciênci­a política, e travestind­o minha dor de elementos positivos. Essa é uma das coisas mais eficazes que a espécie humana já fez.

Acha que esses movimentos dão força a ações individuai­s e a discursos de ódio?

No momento em que estou diluído em uma torcida organizada, em primeiro lugar todas as angústias do meu eu são transferid­as à responsabi­lidade grupal. Um playboy não queima um indígena em uma parada de ônibus, mas vários pegam o índio Galdino e o queimam, porque diminuem a responsabi­lidade, culpa e senso crítico. É como se eu ingressass­e em um útero onde existem poligêmeos, todos protegidos em um espaço que não tem nada ao redor. É muito poderoso. Tenho muito medo de multidões, quaisquer, do futebol, políticas, religiosas, de show. Porque multidões são naturalmen­te histéricas. E é muito pesado se sentir protagonis­ta da sua existência.

‘A FUSÃO ROMÂNTICA É UMA FANTASIA INFANTIL’

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SILVANA GARZARO/ESTADÃO

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