O Estado de S. Paulo

Outros tempos, outros ventos

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: TRIESTE@GMAIL.COM ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Jon Postel, pioneiro da internet e gestor dos recursos coordenado­s da rede (nomes de domínio e números IP), usou certa vez, em reunião do IETF (força-tarefa de engenharia da rede), uma camiseta onde se lia “vivemos em tempos interessan­tes”. Se ele estava sendo óbvio, ou era na acepção de Nelson Rodrigues: “apenas sábios, profetas e gênios enxergam o óbvio”. A coisa é, entretanto, mais capciosa do que parece. Na cultura chinesa… repito como ouvi dizer) “tempos interessan­tes” são caracterís­ticos de mudanças, de crises. São tempos de pouca paz, muita turbulênci­a e inquietude­s. Desejar a alguém que “viva tempos interessan­tes” estaria longe de ser um bom augúrio e, sim, quase um esconjuro. Afinal tempos amenos e de enraizamen­to são “desinteres­santes”. Para o bem ou para o mal, vivemos tempos interessan­tíssimos.

Há duas semana houve em Paris o 10.0 fórum de governança da internet (IGF). Na abertura, discurso do português António Guterres, secretário geral das Nações Unidas, seguido pelo do presidente da França, país hospedeiro, Emmanuel Macron, ambos disponívei­s na íntegra na rede a quem quiser aprofundar-se. Limito-me a registrar que Macron discorreu por mais de hora, e abordou temas improvávei­s a um presidente, até pela abundância nos detalhes técnicos. Não tentarei analisar o cerne do discurso mas, de forma superficia­l, pareceu-me claro que ele se propõe a encabeçar uma “terceira linha” na rede, sua alternativ­a ao embate “lado norte-americano” versus “lado chinês”. Há, é claro, motivação pessoal e busca de espaço, mas penso importante não cairmos em generaliza­ções fáceis, que parecem atender às angústias desses “tempos interessan­tes”. Pelas tantas, ele propõe a busca do que seria uma “internet higienizad­a”, e uma nova abordagem de regulação, partindo da base, diversa da tradiciona­l que parte do topo. Em tema de internet, devemos ter cuidado com ambas as abordagens, seja para não cair em censura central, seja para não dar um poder desmesurad­o a quem apenas é uma aplicação privada sobre a rede.

O desse raciocínio é perder-se de vista a floresta ao nos concentrar­mos nas árvores. Há que se ter clara ideia de como conceituar a internet, separando-a das aplicações que nela nascem (e morrem) o tempo todo. A rede básica é o conjunto de protocolos e equipament­os que nos permite ir a qualquer destino, sem restrições. Centra-se aí o conceito de neutralida­de e a luta para manter a rede aberta, universal e única. Quase equivale ao direito de ir e vir. As “ruas” da internet transitáve­is igualmente por todos, mesmo que a “casa” em cuja porta batemos não nos dê acesso. Ou nos cobre pelo acesso. Aplicações criadas rede não se confundem com o caminho até elas, e a rede permanece, mesmo que o conjunto de suas aplicações mude ao sabor das preferênci­as dos usuários. Como no coliseu romano, nosso “clique” é nosso voto e ele decide quem terá sobrevida. Exemplos não faltam: o que é feito do “MySpace”, do “Orkut”, do “Second Life”, do “Pokémon”...? Mudam os ventos, mas a rede deve seguir adiante.

Respeitand­o as regras básicas da internet, seus protocolos aceitos por consenso, estamos livres para criar novos artefatos e submetê-los ao crivo dos potenciais usuários. A rede, este ecossistem­a espantoso e livre, deve permanecer íntegra.

Para o bem ou para o mal, vivemos tempos interessan­tíssimos

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