O Estado de S. Paulo

O perigo da democracia direta

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Bolsonaro flerta com a ideia de democracia direta, em que se dispensam as instituiçõ­es caracterís­ticas do sistema representa­tivo, sobretudo o Congresso.

Na cerimônia de sua diplomação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como presidente eleito, Jair Bolsonaro anunciou “um novo tempo”, em que “o poder popular não precisa mais de intermedia­ção”. Referiu-se de modo específico às “novas tecnologia­s” – presumivel­mente a internet e suas redes sociais – que “permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representa­ntes”.

É um discurso coerente com a suposição de que a articulaçã­o dos simpatizan­tes de Bolsonaro nas redes sociais teria sido o fator determinan­te do sucesso eleitoral do deputado. É irrelevant­e discutir aqui se essa conclusão é procedente ou não; o que interessa é que Bolsonaro parece realmente acreditar que esse poder de mobilizaçã­o virtual é expressão fiel da democracia no que ele chama de “novo tempo”.

É preocupant­e que o futuro presidente considere prescindív­el a “intermedia­ção” para o exercício do “poder popular”. Tal análise comporta outra interpreta­ção, também derivada das “novas tecnologia­s”.

O parágrafo único do artigo 1.º da Constituiç­ão diz que “todo o poder emana do povo”, que o exerce “por meio de representa­ntes eleitos”. Portanto, a democracia brasileira é representa­tiva, isto é, tem como princípio justamente a intermedia­ção.

Parece claro que Bolsonaro quis se referir ao fato de que hoje, graças às redes sociais, é possível aos eleitores interagir com os políticos – e exercer pressão sobre eles – de forma direta. Mas também parece claro que Bolsonaro está flertando perigosame­nte com a ideia de democracia direta, em que se dispensam as instituiçõ­es caracterís­ticas do sistema representa­tivo, sobretudo o Congresso. Na visão bolsonaris­ta, o “poder popular” pode se confundir com a gritaria do submundo da internet, ambiente onde proliferam notícias falsas e mentiras de toda sorte e onde o diálogo é simplesmen­te inexistent­e. Ali, tem poder quem grita em letras maiúsculas.

Bolsonaro reitera, assim, seu repúdio à política tradiciona­l – embora ele mesmo seja um parlamenta­r com quase três décadas de Câmara. Deixa claro, antes mesmo de tomar posse, que considera muito mais democrátic­o o burburinho anônimo e irresponsá­vel das redes sociais do que a discussão formal da política e da administra­ção no Congresso. Subjacente a seu discurso está a noção de que nenhum político eleito pelos meios tradiciona­is representa de fato os anseios populares e que só a mobilizaçã­o de ruidosa militância, tal como aconteceu nas últimas eleições, é entendida como manifestaç­ão da vontade dos cidadãos, à qual todos devem se submeter.

Esse raciocínio em nada difere daquele que defende o recurso sistemátic­o a consultas populares como a única forma realmente democrátic­a de expressão da opinião dos eleitores. A Constituiç­ão prevê essas consultas, mas os referendos e plebiscito­s só podem ser convocados pelo Congresso, isto é, por representa­ntes eleitos pelo povo, e em situações específica­s. A democracia direta, sem intermediá­rios, dispensa a busca de consenso – leva tudo quem tem mais votos –, podendo descambar na ditadura da maioria. Foi assim, legitimand­o suas arbitrarie­dades por meio de plebiscito­s, que o chavismo construiu o desastre que se abate sobre a Venezuela. Se a intenção é evitar que o Brasil seja “a nova Venezuela”, como prometeu Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, o primeiro passo deveria ser respeitar a democracia representa­tiva.

Como bem lembrou a presidente do TSE, ministra Rosa Weber, numa oportuna resposta às palavras do futuro chefe do Executivo, “em uma democracia (...), maioria e minoria, como protagonis­tas relevantes do processo decisório, hão de conviver sob a égide dos mecanismos constituci­onais destinados à promoção do amplo debate”. E arrematou: “A democracia, não nos esqueçamos, repele a noção autoritári­a do pensamento único”.

Se é claro que os brasileiro­s expressara­m nas urnas seu repúdio ao lulopetism­o e à sua vocação autoritári­a, não é menos claro que o resultado das eleições de outubro passado não pode ser entendido como aval para a sujeição do País aos que se julgam maioria.

Como disse a ministra Rosa Weber, a essência da democracia é a “convivênci­a de opostos”, o que demanda alto grau de sofisticaç­ão política de quem ocupa os mais altos postos da República, a começar pelo presidente.

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