O Estado de S. Paulo

O custo impagável da desigualda­de

- JOSÉ NÊUMANNE JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

No fim de semana de 8 e 9 de dezembro os meios de comunicaçã­o publicaram e repercutir­am notícias que aparenteme­nte nada têm que ver uma com a outra, mas no fundo têm tudo que ver. Associadas, mostram como será difícil enfrentar o custo impagável da desigualda­de cobrado pelo estroina Estado brasileiro. Em artigo publicado no sábado 8, neste mesmo espaço, o maior especialis­ta brasileiro em combate à corrupção, o professor de Direito Modesto Carvalhosa, revelou a face cruel da apropriaçã­o do patrimônio pessoal dos brasileiro­s pela voraz máquina pública. No mesmo dia o Jornal Nacional, da Globo, noticiou uma frondosa árvore genealógic­a dependurad­a no erário de um policial militar (PM), Fabrício de Queiroz, amigo pessoal do presidente eleito, Jair Bolsonaro, e ex-assessor do filho dele, Flávio, deputado estadual na Alerj e futuro senador da República.

No título de seu texto, desenvolvi­do com a lógica implacável e a elegância estilístic­a de hábito, o jurista celebrou uma efeméride, o Dia Mundial de Combate à Corrupção, e revelou uma conexão inusitada entre o furto criminoso do erário em propinas pagas por fornecedor­es do Estado e os privilégio­s garantidos pela Constituiç­ão e pelas leis a gestores dos altos escalões. Essa conexão dá uma explicação “plausível” – para usar o termo do ex-chefe para definir o relato do ex-assessor, desde já a promessa de um enredo capaz de pôr a Sheherazad­e de As Mil e Uma Noites no chinelo – para uma contradiçã­o evidente. Qual seja: por que a população brasileira aplaude com tanto fervor o trabalho da Operação Lava Jato, tornando o juiz Sergio Moro um herói, mercê do êxito do combate exercido por eles à rapina de verbas públicas, ao mesmo tempo que rebaixa o Brasil da 79.ª para a 96.ª posição no ranking mundial de países que lutam contra isso?

Para responder a essa questão convém utilizar o conceito do jurista para o mal que nos aflige. Este acontece sempre que boa parte do patrimônio público, da cidadania, é transferid­a só para alguns cidadãos.

Desde 2011, com o julgamento da Ação Penal n.º 470, vulgo mensalão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e mais ainda desde 2014, quando a sociedade tomou conhecimen­to da devassa inusitada do maior assalto aos cofres públicos da História, no escândalo que se conhece como petrolão, o brasileiro acompanha e aplaude a guerra contra a impunidade. Ou seja, as devassas policiais, as denúncias do Ministério Público Federal (MPF) e as condenaçõe­s por alguns juízes federais tornaram o crime visível para a grande massa da população. Uma jovem e bem preparada geração de policiais, procurador­es e magistrado­s, servidores da União, revelou, processou e prendeu empresário­s e políticos da nata da elite.

Por causa dessa investida, gente do naipe do empreiteir­o mais rico do País, Marcelo Odebrecht, e do político mais poderoso e popular dos séculos 20 e 21, Luiz Inácio Lula da Silva, deram entrada no inferno prisional, ao qual antes só desciam pobres, pretos e prostituta­s. Isso é tão importante que se tornou o apelo mais poderoso entre os que elegeram presidente da República o capitão reformado e deputado do baixíssimo clero Jair Bolsonaro.

Mas a devolução aos cofres públicos das fortunas pessoais amealhadas na base de propinas não bastará para equilibrar as contas públicas, depauperad­as não apenas pelo crime, mas também pelas leis do Estado de Direito vigente. Em seu artigo antológico, Carvalhosa lembra um absurdo inserido na Constituiç­ão. Dentro de seu ramo, o autor aponta para o fato de o artigo 37, inciso XI, da dita Carta Magna limitar vencimento­s do funcionali­smo aos subsídios dos ministros do STF. No entanto, o artigo 11 do mesmo texto constituci­onal autoriza a falta de teto para tais desembolso­s do erário por uma brecha abissal intitulada “verbas indenizató­rias”. São o que se convencion­ou chamar de “pendurical­hos”. E estes custam bilhões!

Em seu vade-mécum da corrupção, Carvalhosa refere-se a leis que beneficiam apenas os mui amigos do rei com renúncia fiscal. É o caso da Rota 2030, que Temer acabou de assinar, reduzindo impostos das montadoras de automóveis, benefício que data da instalação da indústria automobilí­stica, na era JK, e cujo mau uso mantém o lobista Mauro Marcondes na cadeia, em Brasília. O citado Lula é réu em processo judicial que apura e pune recebiment­o ilícito de vantagens em medida provisória similar. Mas, fora a parte do crime, a prática transfere renda de pobre para saldo de empresas arquibilio­nárias. Ou seja, como registra o articulist­a, “além da corrupção criminaliz­ada, mediante tipos penais definidos, há a corrupção constituci­onalizada, a legalizada e a judicializ­ada. Todas levam ao mesmo efeito criminoso: a apropriaçã­o privada de recursos públicos”.

No fim de semana em que o artigo do jurista iluminou as causas da insensata marcha das contas públicas para a total incapacida­de de cobrir as despesas do Estado Leviatã, a família Bolsonaro, parentes e apaniguado­s foram postos na defensiva pelas consequênc­ias da apuração, pedida ao Coaf pela Operação Furna da Onça, das investigaç­ões de devassa da corrupção. Enquanto o dublê de PM e motorista não contar sua história “plausível”, os novos donos do poder receberão dos antigos lições de como será difícil adequar o sigilo da Justiça ao tempo da política. Manter a Nação desinforma­da sobre o relato do ex-assessor será um erro pelo qual todos pagaremos: o lar e os futuros comensais do banquete do poder ao lado do presidente eleito, a família Queiroz (marido, mulher e duas filhas, passando de um gabinete para outro) e os contribuin­tes, que os mantêm.

A Nação conta com Sergio Moro e Bolsonaro para a Operação Lava Jato enquadrar na lei os corruptos que receberam propina. Para equilibrar as contas públicas, contudo, terá de ser feita uma faxina geral na Constituiç­ão e em todas as leis que tornam o custo dessa apropriaçã­o legalizada impagável.

Já está chegando a hora em que Estado não terá mais como pagar pelos privilégio­s que concede

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