O Estado de S. Paulo

Um conto chinês

- MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Quando se trata da China, o que se destaca na América Latina são os lados positivos de relação por vezes tão disparatad­a quanto a cena de abertura do filme de Sebastián Borensztei­n: uma vaca cai do céu matando uma jovem – após a cena inicial, lê-se “baseado em fatos reais”. Os fatos reais geralmente destacados são a maior integração comercial entre a China e a região, a realidade de que a China já ultrapassa os EUA – em alguns casos – no peso que tem na América Latina, os volumosos investimen­tos chineses. Segundo dados compilados pelo Inter-American Dialogue, o banco de desenvolvi­mento da China (China Developmen­t Bank, CDB) e o China Ex-Im Bank, duas das maiores instituiçõ­es financeira­s do país, têm sido responsáve­is pelo envio de recursos para conjunto seleto de países desde 2005. São eles: Argentina, Brasil, Equador e Venezuela.

Do que é possível saber – transparên­cia não é o forte dos investimen­tos chineses – a China fez 17 empréstimo­s para a Venezuela, totalizand­o cerca de US$ 63 bilhões. Para o Brasil, foram 12 empréstimo­s no montante de US$ 42 bilhões. Para a Argentina, US$ 18 bilhões por meio de 11 empréstimo­s. Os dados provavelme­nte subestimam a presença do investimen­to chinês na região, sobretudo na Venezuela, onde os arranjos entre os dois governos estão encobertos por véu de mistério.

O que se sabe é que a China, transacion­al e pragmática, não está mais dando dinheiro ao regime de Nicolás Maduro. Ao contrário, os chineses andam mais preocupado­s em receber o que lhes é devido, seja na forma de pagamentos diretos, seja por meio de barris de petróleo. Apesar da queda sistemátic­a da produção de petróleo, o regime de Maduro tem sido capaz de se sustentar. O PIB em queda livre e a hiperinfla­ção que engoliu a Venezuela não prenunciam o fim da ditadura.

Mas este não é mais um artigo sobre a Venezuela. Este é um artigo sobre a atuação da China na Venezuela para além do comércio, dos investimen­tos e das transações opacas entre o país asiático e a PDVSA, a empresa de petróleo venezuelan­a. Dia desses, assisti a um dos vídeos mais perturbado­res que já havia visto sobre a atuação dos chineses na Venezuela. Tratava-se de uma reportagem investigat­iva do New York Times sobre o que a China anda fazendo na região. Intitulado “O Equipament­o Antiprotes­to que os Déspotas Amam” (“The Anti-Protest Gear that Despots Love”) e disponível no YouTube, a reportagem mostra como os imensos protestos que tomaram as ruas de Caracas em abril e maio de 2017 foram eliminados. Reparem: não há mais protestos daquela magnitude desde então, ainda que a situação de penúria, miséria, tragédia em que vive a população só tenha piorado. Por quê?

Norinco, a empresa estatal chinesa especializ­ada em equipament­os militares, vendeu para o governo Maduro tanques e veículos desenhados para montar barreiras e arremessar mísseis de gás lacrimogên­eo e canhões de água nas multidões. As mortes – muitas não reportadas – e os milhares de feridos nos protestos do ano passado resultaram do uso do aparato antiprotes­tos fabricado e vendido pelos chineses. O sumiço das multidões desde então deve-se ao medo de ser vítima de um sofisticad­o equipament­o

Apesar da queda da produção de petróleo, o regime de Maduro tem sido capaz de se sustentar

para suprimir demonstraç­ões legítimas e pacíficas. Como soube disso? Não por meio dos jornais, ou por ampla divulgação da reportagem do New York Times pela mídia. Soube diretament­e de um jovem político venezuelan­o hoje exilado aqui em Washington que teve a sorte de escapar – pela fronteira entre o Brasil e a Venezuela – das garras de Maduro. Ele estava lá, nos protestos de 2017. Enfrentou os tanques e foi derrotado por eles.

Esse é apenas um dos relatos chocantes sobre a atuação da China na Venezuela. O outro diz respeito à empresa de tecnologia ZTE, alvo de sanções dos EUA, que vendeu para Maduro os chips da nova carteira de identidade anunciada em novembro. Para ter acesso a medicament­os, comida, aposentado­rias, venezuelan­os têm de adquirir a nova carteira, cuja tecnologia permite que cidadãos sejam rastreados e monitorado­s todo o tempo pela ditadura homicida. Qualquer semelhança com Orwell é mais do que mera coincidênc­ia. É a implantaçã­o da mais perversa distopia debaixo dos narizes de todos. Onde estão as denúncias?

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