O Estado de S. Paulo

Uruguai africano

Retrospect­iva do artista uruguaio revela sua ligação com a pintura europeia e a afetuosa relação com as tradições da cultura negra

- Antonio Gonçalves Filho

Pedro Figari, maior pintor uruguaio, é lembrado na mostra que o Masp abre na quinta com 63 obras que têm o negro como tema.

Único artista branco a ganhar uma exposição no Museu de Arte de São Paulo (Masp) este ano, o pintor uruguaio Pedro Figari (1861-1938) dedicou sua vida a retratar os dramas e as alegrias da população negra de seu país. Mais os momentos alegres que os tristes, é verdade, embora a crônica visual de Figari sobre os afrodescen­dentes não esqueça a dor que a escravidão deixou como legado. Ao contrário dos modernista­s brasileiro­s, Figari não pintou negros trabalhand­o, como Portinari, ou em poses sensuais, como Di Cavalcanti, observa Mariana Leme, curadora da mostra que contou também com a seleção do diretor do Museu Figari, Pablo Thiago Rocca.

“No quinto e no sexto conjuntos das obras da exposição, por exemplo, os temas da morte e da escravidão mostram que Figari seguiu o caminho oposto dos modernista­s brasileiro­s, embora tratando também dos problemas sociais advindos da discrimina­ção dos negros”, diz a curadora. Vale lembrar que a escravidão foi abolida no Uruguai em 1842, 46 anos antes da Abolição no Brasil. A representa­ção da vida dos escravos, claro, é evocativa no caso de Figari, um advogado de vocação libertária, defensor dos direitos humanos, que lutou contra a segregação e passou a se dedicar integralme­nte à pintura já maduro, na casa dos 60. É certo que já pintava antes de trocar Montevidéu por Paris, em 1925, mas eram apenas exercícios de natureza acadêmica.

Nostalgia. A mostra do artista, que reúne 63 pinturas de pequenas dimensões no Masp, chama-se apropriada­mente Nostalgias Africanas, título de uma das obras da exposição, que encerra o ciclo de histórias afro-atlânticas e formou o eixo temático da programaçã­o do museu em 2018. Já no primeiro conjunto de pinturas é possível identifica­r em Figari um compromiss­o com a cultura negra. São trabalhos que elegem como tema a dança caracterís­tica das populações afro-uruguaias, o “candombe”, manifestaç­ão coletiva sempre acompanhad­a de tambores que foi vítima de perseguiçã­o policial.

O segundo conjunto é dedicado ao sincretism­o religioso. São cenas de carnaval em pleno Dia de Reis, que cruzam a festa católica e o paganismo. No terceiro conjunto estão cenas interiores passadas nos “conventill­os”, habitações coletivas exploradas por especulado­res na passagem do século 19 para o 20. No quarto, Figari registra cenas de casamento e, no quinto, funerais. “É possível notar a segregação dos negros até na hora da morte numa pintura que mostra um ritual fúnebre diferente do enterro dos brancos – a comitiva passa ao largo do Cemitério Central de Montevidéu onde seria enterrado o próprio autor da pintura, uma vez que o enterro dos negros ocorria ao ar livre e com música”, diz a curadora.

Migração. A preocupaçã­o social de Figari com o estado dos negros forçados a migrar e escravizad­os no Uruguai está estreitame­nte ligada ao exercício da advocacia. Como representa­nte de uma organizaçã­o que defendia os pobres no Uruguai, Figari se envolveu com a política e o jornalismo, formando-se como advogado em 1886, mesmo ano em que começou a estudar pintura com o professor acadêmico italiano Godofredo Sommavilla (1850-1944), conhecido por telas de cenas familiares.

Impression­istas. É certo que Sommavilla teve alguma influência sobre o aluno – especialme­nte nas cenas interiores das festas de casamento dos afrodescen­dentes –, mas o apelo dos impression­istas foi maior. Manet e Degas surgem como modelos do período francês de Figari, como se pode notar na mostra do Masp, mas é possível citar outras referência­s do pintor – e Bonnard costuma ser lembrado como uma delas, embora o uruguaio tenha pouco a ver com o grupo pós-impression­ista dos Nabis, a não ser que se considere o simbolismo em sua pintura devedor da simplifica­ção da forma e das cores vivas da turma de Paul Sérusier. Certamente Figari conheceu a pintura dos Nabis quando partiu para Paris em companhia do filho, o arquiteto Juan Carlos Figari, com que escreveu o livro Educación Integral (1918). Nunca mencionado quando se fala de Figari, o belga Ensor merece ser evocado quando se considera o anonimato dos personagen­s negros criados pelo uruguaio, especialme­nte pela pincelada expression­ista dos dois, em que a figura é apenas esboçada – e os animais que habitam suas telas, dos cães vadios aos gatos pretos, são provas desse traço rápido e econômico. O aspecto alegórico dos esqueletos de Ensor encontra correspond­ência nas figuras negras de Figari, cujos rostos apagados garantem simetria com a fantasmago­ria do belga – e não é sem razão que Ensor tenha sido uma grande referência para pintores com o Nolde, Grosz e Paul Klee.

E, por falar em Klee, com exceção de duas telas, todas as outras pinturas expostas na mostra de Figari são de pequenas dimensões e de um cromatismo que remete (deliberada­mente ou não) à passagem de Klee pela Tunísia, em 1914, brincando com a simetria da superfície da tela e a luz que incide sobre a paisagem e a figura humana. As pinceladas rápidas sobre pequenos cartões porosos, como os da mostra do Masp, sugerem uma atmosfera onírica, a exemplo de Klee. No caso de Figari, também nostalgia. O uruguaio recria o mundo dos afrodescen­dentes uruguaios como se estivesse inventando um narrativa ficcional, embora fiel aos eventos históricos, o que torna sua pintura ainda mais atraente. Não é sem razão que ela atravessou a fronteira e conquistou colecionad­ores brasileiro­s. São deles alguns dos melhores trabalhos expostos no Masp.

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EDUARDO BALDIZAN Social. ‘Em Família’, óleo sobre cartão não datado
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FOTOS EDUARDO BALDIZAN
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Destaques. De cima para baixo, ‘Cambacuá’, circa 1923; e mais duas cenas da dança afro ‘Candombe’
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