O Estado de S. Paulo

Malandrage­m

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Tio Mário dizia o seguinte: na psicanális­e você revela ao analista o que não tem coragem de contar a um padre! Eu tinha 15 anos. O cinema e os amigos já me haviam apresentad­o aos mistérios proibidos de Freud, mas como eu bem sabia o que era uma confissão, guardei como um trauma aquela aguda observação de um dos meus tios mais amados.

Hoje, vejo a sabedoria da sua intuição. Em qualquer confidênci­a, quanto mais o fato confessado é temido a ponto da negação, mais se precisa de coragem para entrar nos seus detalhes. A meticulosi­dade, sobretudo quando o revelado causa vergonha, é o que conduz ao perdão e à autoaceita­ção. Acusar-se a si mesmo é um ato de extraordin­ário heroísmo.

As delações premiadas provam como o diabo mora nos detalhes. A interpreta­ção dos malfeitos não depende da letra ou dos mandamento­s. Ela reside nas circunstân­cias em que foram realizados. São as situações planejadas ou imprevista­s que permitem agir com a velha ética de condescend­ência que tudo nega; ou com a isenção da justiça que condena ou perdoa.

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Na sexta-feira, havia um fenômeno numa igreja. Na fila do confession­ário do padre Geraldo, havia uma multidão; na do padre Alberto, ninguém. Era simples explicar esse desequilíb­rio de pecadores. Tal como o nosso descontrol­e fiscal, o padre Geraldo achava normal nossa abusiva inflação contra a castidade, já o padre Alberto punia severament­e. Fui salvo pelo Maurício.

– Primeiro, disse, jamais caia na besteira de se confessar com o padre Alberto; depois, use a malandrage­m... – Qual?

– Não entre em detalhes. Diga apenas que pecou contra a castidade por pensamento­s, palavras e obras.

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A malandrage­m tem uma dimensão geral – tipo: eu faço porque todos fazem, é o costume. No caso deste Brasil mais ou menos perdido em si mesmo, existe a premissa de que o público não é de ninguém e, por isso mesmo, pode (e deve!) ser apropriado por quem o controla. A malandrage­m nada mais é do que a transforma­ção do impessoal (o que é de todos) em algo invisível. É incrível descobrir que os maiores abusos só escandaliz­am quando envolvem pessoas conhecidas.

Essa inocência universal tem sido o que tanto permitiu a convivênci­a pacífica (e malandra) entre senhores e escravos; e opressores e oprimidos por meio do Estado – esse representa­nte de uma irracional impessoali­dade. Caso fora do comum porque, em todos os lugares onde surgiu a ganância burguesa, o Estado a controlou, mas, entre nós, a cobiça está na apropriaçã­o do Estado como um meio de generaliza­r e de malandrame­nte colocar a culpa em figuras jurídicas tão imutáveis quanto as leis, a economia e os governante­s – sem falar ou tocar no mecanismo que expropria e, ao mesmo tempo – vejam o tamanho da malandrage­m – impede o remédio porque não se pode viver sem governo.

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Ser malandro é usar a lei ao pé da letra, tal como foi ensinado. Por outro lado, a malandrage­m nacional é não entrar nos detalhes. Seu axioma principal, conforme se sabe, é “como tirar vantagem de tudo”, inclusive da lei. Porque de acordo com ela, “tudo foi feito dentro da lei” até que apareçam os detalhes.

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Em Carnavais, Malandros e Heróis estudei a malandrage­m e mostrei como Pedro Malasartes batalhava com os “caxias” e os renunciado­res. Vivemos num país desesperad­o por heróis. Outro dia, um amigo sugeriu que eu deveria republicá-lo com o título de Carnavais e Malandros. Sem nenhum herói, o tomo seria – quem sabe? – um best-seller e um retrato fiel do Brasil.

Essa pátria na qual todas as formas de dominação – burocracia, patrimonia­lismo e carisma – se interligam e se anulam por uma recorrente e malandra malandrage­m.

Os maiores abusos só escandaliz­am quando envolvem pessoas conhecidas

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