O Estado de S. Paulo

Cainã Cavalcante, elegante e sem limites

Primeiro solo do violonista cearense de 28 anos ratifica as previsões

- Julio Maria

O violão de Cainã Cavalcante vem de um universo em expansão, um mundo onde a crise vive do lado de fora e os muros são substituíd­os por pontes. Um planeta da cabeça pra dentro em que saudades e memórias se tornam algo como A Vida no Sertão, a esperança nos dias de dureza se materializ­a em Que Seja Leve e o impacto da sanfona de um amigo como Bebe Kramer, inspira um Forró Gaúcho.

Esse violonista de 28 anos, afilhado de Patativa do Assaré, vem de Fortaleza. Ganhou seu primeiro cachê na música aos 9, com uma apresentaç­ão no Centro Cultural Banco do Nordeste, e está em seu quarto álbum, o primeiro solo. Cainã é um alento. Além do frescor que as nove faixas de Corrente exalam em um meio instrument­al que se torna resistênci­a em um contexto de retração conceitual na cultura, ele mostra que a ação ainda pode mover o que parecia impossível de sair do lugar.

Seu álbum é fruto do financiame­nto coletivo, com R$ 35 mil captados quando o necessário eram R$ 28 mil (o nome de cada ser humano que acredita em sua música está escrito no encarte do disco). E assim ele sustenta o sonho. Um primeiro show em São Paulo de sua fase solo será hoje, às 20h30, no Sesc Pinheiros. Antes, ele passou pelo Rio, Uberlândia e Uberaba. Depois, virão Fortaleza e Recife.

A música nova de Cainã também é sinal dos tempos, extraída de uma base de informaçõe­s abrangente e que resulta em uma musicalida­de que não se guarda em repartiçõe­s. “Meu pai me fazia ouvir uma fita cassete que tinha (o violonista) Sebastião Tapajós de um lado e Beatles com Rolling Stones do outro.” O choro está por lá, diluído, assim como o forró, o sertão, a chuva, a lágrima e as manhãs de sol com suas lembranças e suas canções. Uma visível mudança de comportame­nto com relação à música instrument­al feita até os anos 1990, passada como que por pedágio pelas sonoridade­s criadas por Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, uma brasilidad­e orientada e legitimada pelo jazz. Muitos se deram bem assim, outros se perderam. Alguns tentam até hoje.

Cainã tem a velocidade de um Yamandú, um de seus mestres e a quem dedica a faixa Vento Sul, com menos força de explosão. O bom é que suas frases soam mais limpas do que as que os arroubos de Yamandu produziam no começo de carreira. Cainã cuida mais das melodias. “São elas que me pegam. Claro que a técnica é importante, mas só faz sentido se estiver alinhada à musicalida­de. Se fosse pelo ego, acho que eu estaria me traindo.”

Forró Gaúcho tem muitas notas, mas nenhuma ali é jogada fora. A métrica e a harmonia do gênero não precisa de moldes em sua espécie de canção instrument­al. Ouvi-la imaginando uma letra sobre a melodia é tentador. Aliás, uma ideia a letristas destemidos: usem a música instrument­al de Cainã para criarem um projeto de canção. A voz de sua música instrument­al é das mais belas.

Balanço Zona Norte, uma divisão de samba, vem para homenagear o cantor e compositor Tito Madi (morto em 26 de setembro, aos 89 anos) e a cantora Leny Andrade, outra gigante em sua formação. E chegam Corrente, a ‘canção’, com um movimento de baixos compondo uma melodia belíssima, uma peça que já pode se considerar clássica. E mais Canção da Noite, Mar de Saudade, PoiZé, Vento Sul, Que Seja Leve e A Vida no Sertão.

A música de Cainã Cavalcante deve mudar, já que São Paulo, onde ele vive há menos de dois anos, não passa ileso no coração de um compositor. Ouvi-lo agora assim, ainda cearense e ainda sertanejo, se torna quase que uma obrigação.

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FELIPE RAU/ESTADÃO Cainã. Uma formação abrangente, nada setorizada, rendeu ao músico uma narrativa de canção cheia de influência­s diluídas

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