O Estado de S. Paulo

Atos de coragem

- LUIZ FELIPE D’AVILA

Aflexibili­zação da Lei de Responsabi­lidade Fiscal é um ato de escárnio de um Congresso Nacional em dissintoni­a com a Nação. A maioria dos brasileiro­s expressou claramente o desejo de renovação política e de mudança de comportame­nto dos nossos governante­s nas eleições de outubro. O recado das urnas manifestou um veemente repúdio à corrupção, à ineficiênc­ia do Estado e ao sequestro da política pelos interesses corporativ­istas. Mas eis que o Congresso Nacional, no apagar das luzes da atual legislatur­a, aprova uma nova medida que premia a irresponsa­bilidade dos governante­s, prejudica a população e pune os políticos sérios que tiveram de adotar medidas duras e impopulare­s para honrar o teto de gastos públicos.

A Lei de Responsabi­lidade Fiscal é vital para garantir os fundamento­s da gestão responsáve­l dos recursos públicos. Prefeitos e governador­es podem ser punidos com suspensão de recursos federais, de empréstimo­s e até mesmo com a perda de mandato se gastarem mais de 60% da receita corrente líquida com pessoal. E por que esse limite é tão importante? Porque ele evita dois males. O primeiro é que a inexistênc­ia de um teto de gastos oferece um incentivo perverso a governante­s irresponsá­veis: em vez de investirem na melhoria da qualidade do serviço público para o cidadão, preferem distribuir empregos públicos a seus cabos eleitorais e aliados políticos. O segundo é evitar que políticos perdulário­s tornem inviável o governo dos seus sucessores, deixando os cofres públicos vazios e com dívidas impagáveis.

Winston Churchill, o célebre primeiro-ministro britânico, dizia que a função do Parlamento não é apenas fazer boas leis, mas, principalm­ente, impedir que más leis sejam aprovadas. A leviandade dos parlamenta­res brasileiro­s ao aprovarem a “flexibiliz­ação” da Lei de Responsabi­lidade Fiscal exige uma resposta dura das instituiçõ­es. O presidente Michel Temer tem o poder – e o dever – de vetar a medida.

Caberá ao próximo Congresso a responsabi­lidade de ir muito além da preservaçã­o da Lei de Responsabi­lidade Fiscal. Há duas medidas necessária­s que ajudarão a disciplina­r as finanças municipais antes das eleições dos novos prefeitos, em 2020.

A primeira consiste em limitar a utilização do Fundo de Participaç­ão dos Municípios. É imprescind­ível vetar o uso dos recursos desse fundo para o pagamento de despesas correntes, como é o caso do gasto com pessoal. Cidades deveriam ser obrigadas a arcar com as despesas da máquina pública com recursos provenient­es da arrecadaçã­o dos tributos municipais. Se não forem capazes de financiar os gastos do governo com suas próprias receitas, serão forçados a aumentar os impostos ou ser mais eficiente na fiscalizaç­ão e cobrança de tributos devidos. Caso não consigam tornar viável o custeio de suas despesas, terão, em última instância, de se fundir com outros municípios. Uma cidade, assim como uma pessoa, não se pode autoprocla­mar independen­te se não for capaz de viver com recursos próprios. Assim, o dinheiro do Fundo de Participaç­ão dos Municípios só poderia ser utilizado para investir na melhoria da qualidade do serviço público – o que o cidadão aguarda avidamente.

A segunda medida consiste em proibir a remuneraçã­o de vereadores de cidades até 50 mil eleitores. Durante muitos anos, vereadores das pequenas cidades não recebiam remuneraçã­o por sua atividade. Tratase de uma boa prática que precisa ser ressuscita­da. Estudo recente publicado pela Frente Nacional dos Municípios revela o absurdo de transplant­ar o mesmo arcabouço administra­tivo das grandes cidades para os pequenos municípios. Nas grandes metrópoles, com população acima de 500 mil habitantes, a média de servidores públicos é de 17/mil habitantes. Já nas cidades com população até 20 mil habitantes, a média é de 50/mil. É preciso acabar com salários, cargos e cabide de empregos que aumentam o custo da máquina pública e não trazem melhoria da qualidade dos serviços públicos para o cidadão.

Na gestão pública, temos de mudar a cultura da sinecura para a da meritocrac­ia. Isso significa separar o joio do trigo no funcionali­smo público. O primeiro precisa ser extirpado, o segundo tem de ser valorizado e reconhecid­o. Há um mito de que não se pode demitir funcionári­o público. Não é verdade. O artigo 41 da Constituiç­ão da República determina as condições em que se pode demitilos. O parágrafo 3.º é claro. O servidor pode ser posto em disponibil­idade e receber, como “remuneraçã­o proporcion­al ao tempo de serviço”, 1/35 (homens) e 1/30 (mulheres) para cada ano de serviço prestado. Ou seja, a extinção de cargos e o corte substancia­l de pessoas podem proporcion­ar uma economia significat­iva, capaz de financiar os vencimento­s dos funcionári­os afastados.

Já os bons servidores públicos precisam ser valorizado­s, capacitado­s e ter um plano de carreira que os motive a trabalhar com senso de propósito público, metas claras de desempenho e meritocrac­ia. Ana Carla Abrão, colunista do Estadão, vem insistente­mente enfatizand­o a necessidad­e de promovermo­s uma revolução nos recursos humanos do setor público. E ela está absolutame­nte certa. A existência de uma burocracia pautada pelo espírito público e focada em resultados é vital para melhorar a qualidade do serviço público, a eficiência do Estado e ainda diminuir a corrupção.

Há muita gente talentosa na gestão pública que também aguarda os atos de coragem dos novos governante­s para destravar as amarras do Estado, reduzir o excesso de burocracia e o custo incompatív­el da máquina pública com a qualidade do serviço que presta à população. O resgate da credibilid­ade da política começa pelo respeito dos governante­s à vontade expressa pelos eleitores nas urnas.

Temos de mudar a cultura da sinecura para a da meritocrac­ia na administra­ção pública

PRESIDENTE DO CONSELHO DO CENTRO DE LIDERANÇA PÚBLICA (CLP), É AUTOR DO LIVRO ‘10 MANDAMENTO­S – DO PAÍS QUE SOMOS PARA O BRASIL QUE QUEREMOS’

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