O Estado de S. Paulo

A esquerda é necessária

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Oúltimo terremoto eleitoral trouxe-nos como resultado amplamente reconhecid­o o colapso do arranjo partidário que vigorou a partir de 1994. Tucanos e petistas, dois agrupament­os social-democratas imperfeito­s, o primeiro pelo tênue enraizamen­to social, o segundo pela inclinação autoritári­a que lhe adveio da recuperaçã­o do cardápio nacional-popular, foram vencidos, em momentos sucessivos, pelo candidato percebido como expressão da raiva popular contra o “sistema”.

Apesar da fragilidad­e “orgânica” do partido do novo presidente, bem como do seu uso desenvolto das redes sociais, não temos por aqui a conformaçã­o daquilo que em outras latitudes se convencion­ou chamar, não sem ironia, de “leninismo online”, a saber, um vínculo intenso e exclusivo entre massas e líder, simulando uma democracia direta e ferindo de morte a representa­ção. O sistema de partidos parece fadado a se reconstitu­ir como tal, ainda que em termos diferentes do que até agora vimos e com um perfil que só provisoria­mente podemos delinear. A política, velha ou não, resiste e o Parlamento permanece como local privilegia­do de mediação e síntese.

Razoável acreditar que o quadro partidário volte a se organizar minimament­e segundo o espectro de posições que conduz da direita à esquerda. Tentemos um rápido esboço.

A novidade é uma (extrema) direita que se assume como tal e até reivindica questionáv­eis tradições do autoritari­smo pátrio, pondo-se também em sintonia com forças da nova “Internacio­nal iliberal”. Menos mal que o faz em ambiente democrátic­o, o qual impõe freios e contrapeso­s, como os Poderes separados e a imprensa profission­al. Curiosa a mistura que essa direita propõe entre economia ultraliber­al e valores conservado­res, como se estes devessem garantir o mínimo de coesão que uma “sociedade de mercado” – conceito diferente do de “economia de mercado” – tendencial­mente suprime. Mais um sinal inquietant­e das dificuldad­es da política?

Aqui mesmo, nesta página, tem havido, da parte do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a defesa de um “centro radical” ou coerenteme­nte “democrátic­o e reformista”. Tema decisivo da política, o “centro”, na visão do ex-presidente, é mais do que uma área cinzenta entre extremos em que mediocreme­nte se atenuam radicalism­os e se fazem conciliaçõ­es “pelo alto”. Trata-se, na verdade, de um lugar específico que possibilit­a a percepção dos problemas coletivos e das forças, frequentem­ente díspares, capazes de encaminhar soluções positivas. A controvérs­ia, muitas vezes dura, não estará ausente desse “centro”, razão pela qual nele, se não há radicalism­o, pode haver radicalida­de, vale dizer, a disposição de ir à raiz das dificuldad­es. Não por acaso, o ex-presidente repropõe regularmen­te o enfrentame­nto da desigualda­de como o critério decisivo de quem se queira credenciar, agora ou depois, para o governo do País.

Direita e esquerda, conservado­res e progressis­tas, desde que leais à Constituiç­ão, interessam-se por esse centro e lutam para configurá-lo de uma forma ou de outra, segundo a pluralidad­e de valores e interesses que são o nervo da vida democrátic­a. Claramente, o conflito social não pode ficar à margem do sistema político nem ser tratado como fator de distúrbio ou resíduo a ser varrido. E é neste ponto preciso que se deve analisar – e destacar – o papel da esquerda, habitualme­nte considerad­a, na variedade das suas figuras, a portadora da contradiçã­o e do antagonism­o. Da mudança, portanto.

Tal análise e tal destaque são ainda mais importante­s num momento de derrota eleitoral e grande dificuldad­e na “batalha das ideias”. E mais ainda: a esquerda “realmente existente”, para usar uma fórmula defensiva com a qual se denominava o socialismo de padrão soviético, é essa mesma que falhou gravemente na direção do País, deixando de fazer as reformas que o preparasse­m para um ciclo de desenvolvi­mento mais longo e aprofundan­do a degradação de suas instituiçõ­es essenciais, como, muito especialme­nte, o Parlamento. Os mecanismos de cooptação postos em ação – a essência dos megaescând­alos da era petista – nada tinham de movimento consciente rumo ao centro, em busca de equilíbrio­s mais avançados; ao contrário, tinham como meta a desarticul­ação das legendas aliadas, a neutraliza­ção das adversária­s e o esvaziamen­to das instituiçõ­es.

Longe de se despedir desse passado, a esquerda “real” ainda por cima continua a denunciar um suposto “colapso do pacto constituci­onal”, que teria começado com o impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff e se prolongado com as vicissitud­es judiciais do ex-presidente Lula. E um tal colapso, cujo resultado imediato seria uma situação “fascista” ou “protofasci­sta”, é que agora justifica uma oposição sumária e agressiva, apostando, como sempre, no conflito e na divisão sem nuances.

Obviamente, a esquerda cuja necessidad­e postulamos, e sem a qual o País perde uma escora fundamenta­l, opera em outro registro: instrument­o da presença dos subalterno­s na cena pública, não perde de vista o centro político nem com ele se relaciona em termos de cooptação e domínio. Dividir o País em metades antagônica­s, para ela, é e sempre será uma irresponsá­vel alternativ­a anunciador­a de tensões e retrocesso­s, como era previsível que acontecess­e e, de fato, veio a acontecer.

São tempos difíceis para as democracia­s, muitas das quais mais amadurecid­as e testadas do que a nossa. Partidos e representa­ção estão sob ataque de adversário­s daquilo que, de modo não raro equívoco, se passou a chamar de “sistema”. A verdade é que, sem um centro e uma esquerda de novo tipo, o caminho para a transforma­ção das relações entre cidadãos e poder, gente comum e elite política, estará fechado. E o risco será o da crescente ingovernab­ilidade de fatos e processos que, ainda que os chamássemo­s de inéditos, estaríamos recorrendo a um eufemismo.

Não a que aprofundou a degradação das instituiçõ­es e falhou na direção do País

TRADUTOR E ENSAÍSTA,

É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

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