O Estado de S. Paulo

O inimigo inventado

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Como ditador que se preza, Nicolás Maduro segue à risca a cartilha dos liberticid­as e frequentem­ente aponta fatores externos – deturpados ou simplesmen­te inventados – como causas das terríveis mazelas infligidas ao povo venezuelan­o pelo regime que prossegue comandando com mão de ferro desde a morte de seu mentor, o coronel Hugo Chávez, em 2013.

O estado miserável em que vive a imensa maioria dos venezuelan­os, que acorda todos os dias sem saber se terá alimento para sobreviver por mais 24 horas, seria resultado não da inépcia e dos crimes praticados pelo chavismo, mas dos estratagem­as dos Estados Unidos para fazer valer mundo afora os seus interesses geopolític­os e econômicos. E neste enredo de trama de espionagem para escamotear os problemas intrínseco­s do regime chavista cabe qualquer coisa, até os maiores absurdos.

A trama mirabolant­e da vez em Caracas insere o Brasil e a Colômbia em um complô não só para derrubar o presidente da Venezuela, mas, pasme o leitor, para assassiná-lo. “Chegou a nós uma boa informação. John Bolton (assessor de Segurança Nacional dos EUA ), desesperad­o, designando missões para provocaçõe­s militares na fronteira”, disse Maduro em entrevista a jornalista­s estrangeir­os.

Maduro prosseguiu afirmando que Bolton foi designado pelo presidente Donald Trump para “levar violência à Venezuela, buscar uma intervençã­o militar estrangeir­a, (dar) um golpe de Estado, assassinar o presidente e impor o que chamam de um conselho de governo transitóri­o”. As instruções para instalar o caos na Venezuela, como se lá caos já não houvesse e o país fosse um oásis de paz e prosperida­de prestes a ser atacado, teriam sido “transmitid­as por Bolton ao presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército”. O plano para desestabil­izá-lo contaria ainda com a ajuda do governo colombiano. “O governo da Colômbia, de Iván Duque, é cúmplice do plano de Bolton”, acusou Maduro.

De fato, Bolton e Bolsonaro se reuniram recentemen­te no Rio de Janeiro. Foi o primeiro encontro do presidente eleito com uma alta autoridade do governo americano. Nada, no entanto, sequer sugere que uma coalizão militar internacio­nal para invadir a Venezuela, depor ou assassinar o presidente e instalar no país um “governo transitóri­o” tenha sido discutida à mesa do café da manhã na residência de Bolsonaro no Rio.

São variados os temas que podem ser discutidos entre Brasil e Estados Unidos no que concerne à área de segurança, inclusive os que envolvem política internacio­nal em geral e a crise na Venezuela, em particular. Mas imaginar que o Brasil se envolveria em uma trama que poderia culminar na morte de Nicolás Maduro ultrapassa o ridículo. O presidente venezuelan­o, assim, reforça a caricatura do típico caudilho latino-americano, inventando inimigos a fim de desviar a atenção de seu povo para os desmandos do próprio regime.

Não é da natureza do País se imiscuir em questões internas de nações soberanas, menos ainda por meio da violência. O próprio presidente venezuelan­o reconheceu este fato. “As forças do Brasil querem paz. Ninguém no Brasil quer que o futuro governo de Jair Bolsonaro se meta em uma aventura militar contra o povo da Venezuela”, disse Nicolás Maduro. O Brasil sempre se pôs diante da questão venezuelan­a como mediador natural entre governo e oposição, como é da tradição diplomátic­a do País, afeita ao diálogo, à concertaçã­o entre as nações.

Em nota, o governo colombiano rechaçou as acusações. “A Colômbia respeita o direito internacio­nal, os costumes e princípios que regem as relações internacio­nais. Exigimos que Nicolás Maduro respeite o presidente Iván Duque”, diz o texto. O governo brasileiro não se pronunciou oficialmen­te. É fundamenta­l que o faça e refute as graves acusações feitas por Nicolás Maduro ao País. O silêncio pode dar ares de verdade às invencioni­ces do presidente venezuelan­o.

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