O Estado de S. Paulo

Democracia rediscutid­a

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Ofortaleci­mento do populismo, a ascensão da China e as manifestaç­ões na França reforçam a necessidad­e de uma discussão honesta a respeito da democracia. Os manuais de ciência política precisam ser reescritos, nos capítulos dedicados à relação entre democracia, capitalism­o e inovação. Há uma crise de legitimida­de da política, que não irá embora com artifícios de marketing.

Participei nos últimos dias em Marrakesh dos Atlantic Dialogues, uma conferênci­a sobre geopolític­a e desenvolvi­mento global, que frequento todos os anos desde a segunda edição, em 2013. China e um “novo contrato social” foram os principais temas. Não há respostas definitiva­s, mas alguns pontos de partida estão claros.

Começando pela China. O postulado segundo o qual a força inovadora do capitalism­o está associada à liberdade de pensamento não é mais válido. Esse postulado foi elaborado antes do uso do algoritmo como ferramenta de captação e distribuiç­ão da informação nas plataforma­s digitais. Os chineses estão criando um sistema de controle dos movimentos, hábitos, opiniões e consumo de sua população que permite ao Estado destilar a inovação voltada para a indústria e os serviços daquela vinculada às aspirações culturais e políticas.

Isso tem sido possível na China por uma razão cultural: a maioria dos chineses não prioriza a liberdade política nem a privacidad­e pessoal. A discussão sobre ceder nessas duas esferas de direitos nem existe, porque eles nunca usufruíram nem de uma nem de outra. O que lhes importa é a melhora nas suas condições de vida materiais, que eles vêm experiment­ando.

Estive duas vezes na China este ano. Cansados de se sentirem inferiores, por viverem sob uma ditadura de partido único, os intelectua­is chineses se regozijam com a estabilida­de e a prosperida­de que seu regime tem proporcion­ado ao seu povo, em contraste com a polarizaçã­o política e as frustraçõe­s expressas pelos ocidentais, no campo socioeconô­mico.

O presidente francês, Emmanuel Macron, experiment­ou nas últimas semanas o quanto a massa de descontent­es é insaciável. Em dois recuos sucessivos, ele retirou o aumento do imposto sobre o combustíve­l e anunciou um pacote de ¤ 10 bilhões (R$ 44,31 bilhões) em iniciativa­s sociais.

Ainda que o movimento possa refluir, não há iniciativa do governo capaz de eliminar essa onda de rejeição. E a razão é simples: o pano de fundo dos protestos é o não reconhecim­ento da legitimida­de de um governo eleito democratic­amente.

Não há uma pauta a ser negociada, não há concessões que superem o conflito. Porque a sua essência é um sentimento difuso de exclusão. O mesmo se aplica ao Brexit. No plebiscito de 2016, os britânicos votaram, por pequena margem, em favor de algo impossível: que o Reino Unido deixe de arcar com as responsabi­lidades de pertencer à União Europeia sem abrir mão dos benefícios econômicos dessa integração.

No processo de negociação do Brexit, ficou claro para a maioria dos britânicos o que os especialis­tas já sabiam: a saída, se levada a cabo integralme­nte, representa­ria um desastre para a economia britânica, hoje totalmente dependente dos acordos firmados ao longo de décadas com os parceiros europeus. E uma saída pela metade – a única economicam­ente sustentáve­l – resulta numa situação pior que a atual, porque implica em continuar obedecendo aos ditames de Bruxelas sem participar das decisões. Ou seja, em vez de recuperar soberania, os britânicos vão perder.

Na Alemanha, as baixas sofridas pela União Democrata-Cristã (CDU), de centro-direita, e pelo Partido Social Democrata (SPD), de centro-esquerda, são a clara expressão desse descontent­amento localizado. Mais ainda do que a França e o Reino Unido, a Alemanha se beneficiou enormement­e da integração econômica das últimas décadas, emergindo como o maior exportador, em valor agregado, e como líder da zona do euro, ditando as regras do segundo maior sistema monetário do mundo.

Mas a vida piorou para uma parte dos alemães, franceses e ingleses. Outra parte, os mais jovens, não encontra um lugar para si. Há um conjunto enorme de valores, que compõem as prioridade­s de setores expressivo­s da população, na Europa e nas Américas, que não é contemplad­o pelas políticas convencion­ais dos governos desses países.

Há uma exigência de coerência por parte dos mais jovens e de bemestar dos mais velhos, da qual os governos, principais partidos, grandes empresas, lideranças religiosas e a mídia estão muito aquém.

Nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, a indignação com essa distância entre as prioridade­s dos dirigentes políticos e de parte da população levou à ascensão do populismo. Líderes que compreende­ram essa ira com a política tradiciona­l, como Donald Trump, Luigi di Maio e Matteo Salvini (Itália), Viktor Orban (Hungria), Lula e agora Jair Bolsonaro, estão se aproveitan­do dela, mas dificilmen­te trarão respostas sustentáve­is no tempo.

É preciso pensar num novo contrato social, no qual as pessoas sintam que realmente participam das tomadas de decisão. As plataforma­s digitais permitem uma forma mais direta de democracia. Talvez no futuro próximo compreenda­mos que precisamos menos de líderes e mais de gestores, que trabalhem sob o escrutínio direto dos cidadãos.

Enquanto esse novo sistema é gestado, é preciso cuidar para que a polarizaçã­o não aumente e o tecido social não esgarce mais ainda. Lucidez e paciência são essenciais para quem não quer ser arrastado para os extremos da polarizaçã­o.

Há uma exigência de coerência por parte dos mais jovens e de bem-estar dos mais velhos

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil