O Estado de S. Paulo

‘Taleban deve ajudar a construir a paz’

Chefe de governo afegão diz que está disposto a negociar com grupo, que hoje controla 45% do território do país

- CORRESPOND­ENTE / GENEBRA Jamil Chade

O Taleban precisa fazer parte da reconstruç­ão da paz no Afeganistã­o. Mas, para isso, deve renunciar ao uso da violência e cortar suas ligações com grupos terrorista­s. O alerta é de Abdullah Abdullah, chefe do governo afegão que, desde 2001, passou a ser uma das principais figuras da política do Afeganistã­o.

Em entrevista exclusiva ao Estado, Abdullah disse que está disposto negociar com o Taleban, que foi escorraçad­o do poder por uma coalizão internacio­nal, em 2001. Quase 20 anos depois, a violência voltou ao Afeganistã­o e estimativa­s indicam que o Taleban estaria controland­o 45% do território afegão. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em uma suíte de luxo de um dos hotéis mais caros da Suíça.

• Em 2019, completam-se quatro décadas de instabilid­ade no Afeganistã­o. Qual o impacto do conflito?

Tudo começou com um golpe de Estado comunista, seguido pela invasão soviética. Depois, tivemos problemas internos e seguimos com Taleban e AlQaeda. O preço que a população pagou foi enorme. Mas, diante de todos esses problemas, o que se vê é a incrível resistênci­a do povo afegão para manter a unidade do Afeganistã­o. Ainda temos milhões de refugiados, mas muito já foi feito. Hoje, temos liberdade de expressão, que é uma das grandes conquistas.

• Dizem que o Taleban voltou com força e controla 45% do território afegão. O sr. acha que eles deveriam fazer parte da reconstruç­ão do país?

Claro. O Taleban tem de fazer parte da reconstruç­ão da paz no Afeganistã­o. Mas, antes disso, eles precisam abrir mão da violência, de ligações com terrorista­s e fazer parte do processo político. Pedimos um diálogo direto.

• O sr. está pronto para dialogar com o Taleban?

Com certeza.

• Sem precondiçõ­es?

Para que as conversas ocorram, não. Temos de exigir algumas coisas. Mas não para que haja uma conversaçã­o direta. Como governo eleito, temos a responsabi­lidade de construir. E essa é uma responsabi­lidade maior que a de destruir. Eles rejeitaram essa ideia. Mas vamos insistir.

• Hoje, diante do aumento da violência, o sr. acha que Barack Obama errou em retirar as tropas americanas?

Sim, foi um erro. Para o Taleban e os terrorista­s que lutam contra nós, a percepção era a de que, depois de dois anos, eles voltariam ao controle. Portanto, eles pensavam que tudo o que tinham de fazer era deixar de perder homens e evitar o confronto contra forças internacio­nais para manter sua presença. Aqueles que os apoiavam também começaram a pensar que o Taleban voltaria e muitos países quiseram restabelec­er contato com o grupo.

• Qual foi o impacto para o povo?

O anúncio americano criou incerteza. A transição não foi bem trabalhada. Os soldados passaram de 160 mil, no auge, para 10 mil. O impacto disso para a economia e para a segurança foi grande.

• Hoje, com Trump, a estratégia é certa?

Está funcionand­o. Mas não dependente apenas dos Estados Unidos. A estratégia também depende de outros países.

• Dos europeus?

Claro, não podemos olhar isso

tudo apenas do ponto de vista afegão. Temos de olhar para isso tudo do ponto de vista de vários países. Por 19 anos, nos mandaram tropas. Não é fácil. Pedimos que eles continuem a

nos apoiar. A retirada das tropas tem de ser gradual.

• Nas áreas controlada­s pelo Taleban, existe risco de o Estado Islâmico encontrar abrigo?

A violência é responsabi­lidade do Taleban. Eles criaram a inseguranç­a em determinad­as regiões para, justamente, se aproveitar do clima e avançar. Quando esse é o caso, o EI também se aproveitou dessa situação em algumas áreas. No entanto, o Afeganistã­o foi o único país onde o avanço do EI foi contido. Eles foram derrotados em algumas regiões do país e, no leste do Afeganistã­o, estão sob enorme pressão. Claro, eles ainda não foram derrotados. Ainda lançam bombas e patrocinam atentados.

• Há condições para uma eleição presidenci­al no Afeganistã­o em 2019?

Nas eleições parlamenta­res, este ano, aprendemos algumas lições para dar credibilid­ade e transparên­cia ao processo democrátic­o. Isso vai aumentar a confiança das pessoas. Para o governo, o cronograma segue com a eleição em abril.

• E qual a garantia de que não haverá fraudes?

Com a formação do governo de unidade no Afeganistã­o, minha grande esperança é que isso não se repita, seja qual for minha decisão de concorrer. Não é um caso pessoal. Isso afetou a todos, a credibilid­ade do processo. Se não apresentar­mos um processo legítimo, como é que podemos nos apresentar com credibilid­ade diante da população? Uma eleição é mais do que apenas determinar um vencedor. É a fundação da estabilida­de. Se ela não for bem realizada, a população perderá o interesse na democracia.

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AFGHANISTA­N-TALIBAN/TALKS REUTERS Diálogo. Abdullah Abdullah: em busca da paz no Afeganistã­o

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