O Estado de S. Paulo

Em caso de estupro, melhor quebrar tudo

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Gostaria de começar o artigo estimando o número de decisões que tomamos por dia. Infelizmen­te não encontrei fonte confiável. O oráculo moderno da internet fala em 35 mil decisões diárias, o que não me parece razoável.

Para fechar essa conta, ao longo de 24 horas teríamos de deliberar sobre alguma coisa a cada dois segundos e meio. Duvido. Sobretudo porque terceiriza­mos grande parte das decisões que tomamos na vida. Enquanto escrevo o artigo posso até escolher quais palavras usar, mas depois não posso – nem preciso – pensar sobre a ordem das letras.

Aliás, a própria estrutura das frases, sentenças e parágrafos requer pouca decisão – devo seguir as regras da gramática (e se as firo, leitor, saiba que o faço mais por ignorância que por rebeldia). Decidir ser compreendi­do pelos leitores constrange minha liberdade – é preciso obedecer às convenções.

Viver requer sim ações contínuas. Nem todas, porém, são verdadeira­s escolhas. Diante de um prato de comida, pronta a garfada não precisamos decidir mastigar e engolir. A propósito, com relação à refeição encontrei dados objetivos: uma dupla de cientistas contou, em média, 220 decisões sobre a alimentaçã­o ao longo de um dia.

A maior parte, contudo, é feita inconscien­temente a partir de pistas ambientais. O tamanho do prato influencia na quantidade de comida. As regras sociais ditam a ordem dos alimentos.

Não é só com relação à comida e aos artigos de jornal que nos fiamos no comportame­nto alheio para guiar o nosso próprio. No trabalho, no clube, na igreja, na fila do açougue, o tempo todo espelhamos os outros para não gastar a energia que requer um raciocínio consciente. Obedecer é muito mais rápido e econômico.

Em situações desconheci­das, inesperada­s e ameaçadora­s, então, nem se fale. Nas catástrofe­s sempre há histórias de sobrevivên­cia miraculosa – ou tragédias enormes – por causa do comportame­nto em massa das pessoas.

Assustado, nosso cérebro entra em modo de fuga ou luta, pronto para fazer alguma coisa, qualquer coisa, mitigando a ameaça. Não fomos programado­s para decidir racionalme­nte o que fazer em caso de emergência – quem tinha essa tendência não sobreviveu para deixar descendent­es. É por isso que há protocolos de crise, rotas de fuga preestabel­ecidas, simulações de evacuação, brigadas de incêndio. Não perca tempo pensando. Siga as regras.

Quem nunca se viu numa situação dessas pode achar estranho ler os relatos de assédio sexual em Abadiânia (GO). Como em muitos casos de estupro, é comum vítimas contarem que ficaram em choque, anestesiad­as, não conseguira­m reagir, subservien­temente obedecendo a comandos, mesmo contra sua vontade. Por que não gritaram? Ou não se recusaram? Não fugiram? Pode parecer fácil a distância, na tranquilid­ade do domingo, lendo jornal. Mas, particular­mente no caso do João de Deus, é muito mais complexo.

As pessoas ali estão doentes, fragilizad­as. Totalmente vulnerávei­s. Isso já deixa o cérebro inclinado a ligar o modo de sobrevivên­cia, reduzindo o dispendios­o modo raciocínio crítico. Além disso, o acusado é figura de autoridade máxima, alguém em quem previament­e se investiu toda confiança.

Se há um líder a ser seguido, é ele.

E de repente, sem aviso, quando menos se esperava, surge um pênis e a ordem de acariciá-lo. Imagine o choque. Mais: imagine o choque para alguém que já estava ansiosa. Qual o protocolo para essa situação? Um branco toma conta da mente. Não houve treinament­o de evacuação em caso de estupro num centro religioso. Mas o cérebro quer fazer algo. O paradoxo é que a escolha natural e imediata é seguir ordens. São ordens que causaram tudo isso, para começo de conversa.

Dá para entender um pouco mais o trauma? É por isso que as vítimas se sentem culpadas. Envergonha­das. Não denunciam. Elas também acham que deveriam ter reagido. Mas não conseguira­m. Talvez esse seja o momento de criarmos outros protocolos de crise. Não acho que tem problema ensinar as meninas a serem princesas. Desde que ensinemos também quando – e onde – dar uma joelhada.

Talvez esse seja o momento de nós criarmos outros protocolos de crise

É PSIQUIATRA

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