O Estado de S. Paulo

Jacira coloca os fantasmas para fora

Mãe de Emicida lança livro em que narra passagens envolvendo racismo e maus-tratos cometidos por freiras

- Julio Maria

Escrever livros não era para ela. Gente de pele clara poderia fazer isso, gente que falava bonito, que recebia risos da professora e vivia ouvindo que o mundo dependia de seu talento. Ela não. E não por uma razão que desde os cinco anos se esforçava, mas não conseguia entender. Mesmo que suas emoções fossem as mesmas das meninas brancas, Jacira era preta. E algo deveria haver de assustador por debaixo daquela pele que fazia alunos e professore­s sentirem medo. Os alunos eram separados nas filas de carteiras da sala de aula pela cor da pele. Uma professora esfregava as mãos em um gesto de escárnio sempre que falava com ela. Sua função era limpar as latrinas e seu dever, junto com a sala, era se levantar assim que a diretora surgisse, colocar a mão direita no peito e saudar o líder da nação, Emílio Garrastazu Médici, 28.º presidente do Brasil, terceiro do período militar. “Alguém teria que me dizer quem era aquele homem.” Nem a mãe nem a igreja e nem a vizinhança sabiam. E nenhuma professora se importava em responder.

Escrever livros não era mais uma escolha. “Isso eu já fazia sem saber, mesmo percebendo que os professore­s não gostavam quando me viam escrevendo. Passei a vida achando que não conseguiri­a, que faria mal.” Mas, como a música que não se canta com a voz, um livro não se escreve com as mãos. E para Dona Jacira, muito antes de ouvir uma professora dizer que vassoura e pano de chão seriam muito mais úteis para o seu futuro do que lápis, caderno e borracha, o livro já estava sendo escrito pelas cores das frutas, os tatuzinhos bola do quintal, o cheiro do feijão no fogo, a voz de Zé Bettio no rádio e as músicas de Luiz Gonzaga na vitrola. “E aí fui escrevendo, enchendo cadernos e deixando de acreditar que só quem escrevia era gente rica.”

A sensibilid­ade venceu os monstros que nasceram das surras que tomou e é com ela que o texto de Jacira desabrocha em Café, o primeiro de seus previstos três livros em que narra suas memórias como se estivesse recebendo o leitor na sala de casa. “Quando falo, ainda me emociono. Eu apanhei calada e, quando isso acontece, nascem umas feras dentro de nós. Eu não quero domá-la, mas acalmá-la. São coisas que precisam ficar aqui dentro de mim.”

Hoje com 54 anos, Jacira casou-se aos 13. E seus filhos começaram logo a chegar, o rapper Emicida, o produtor Evandro Fióti e mais duas irmãs. Ao mesmo tempo que simbolizav­am uma vida mais desafiador­a, eram também sua salvação. “Eu tentaria suicídio três vezes, mas, com eles, comecei a querer ser melhor para mantê-los juntos.” Mas por que morrer? O que teria levado Jacira a desistir da vida tão cedo? “Eu não podia fazer nada. Eu não podia escrever, que era o que eu mais gostava de fazer, não podia ter um lápis de cor. Fui parar em um convento sem saber por quê”, ela diz.

Impossível não sentir a angústia e a solidão de Jacira em seus primeiros dissabores. Aos 10 anos, ela se lembra de ser acordada pela voz da mãe. “Vamos.” A

E aí fui escrevendo, enchendo cadernos e deixando de acreditar que só quem escrevia era gente rica”

Dona Jacira

mala já estava feita e nunca houve explicação. O silêncio materno, mais do que as decisões, ficariam como mágoas na filha por muitos anos. “O silêncio. Muitas mulheres e homens fazem isso. Tenho mágoa do silêncio feminino. É preciso falar com as crianças.” Ao chegarem a uma loja, Jacira foi recebida por uma menina bonita, ruiva, também de dez anos, de cabelos cacheados e cheia de conversa. Em um certo momento, a garota se levantou e buscou uma laranja. “Vamos ver se eu gosto da laranja que você descasca.” Jacira estranhou. “Você não sabe descascar?” “Eu sei, mas você vai ser a minha empregada.” “Não vou não.” “Vai sim, sua mãe já até levou a sua mala lá pra minha casa.” “Não vou não.”

Jacira tentou sair da casa, mas foi segurada e recolocada no mesmo banco em que estava, com a mesma laranja nas mãos. “Descasque a laranja!”, voltou a dizer a menina. Jacira conta em seu livro que apanhou, foi mais humilhada, chorou muito, mas não descascou a laranja. “Sentei-me no chão do banheiro com o chuveiro ligado e respirei fundo, vitoriosa. Venci, venci, venci. Ninguém vai me deixar onde eu não quiser”, ela conta no livro. A garota voltou no dia seguinte começando uma frase: “Se você pedia desculpas...” E ela a cortou, sem medo: “Quando eu tiver culpa, eu peço”.

Há memórias duras também da época em que Jacira esteve em uma escola de freiras. Ao Estado, ela conta que a realidade é um pouco mais assustador­a do que o conteúdo do livro. “As freiras nos beliscavam, e faziam isso na virilha e nos órgãos sexuais, nas axilas. Eu me lembro de que nos colocavam debaixo de uma água fria assim que nos tiravam da cama. Um dia, resolvi contar isso e fui punida. E a punição foi tão forte que acabei indo parar em um hospital, em coma. Os médicos diziam que, quando eu via uma freira, eu sempre piorava.” E Jacira nunca teria decidido denunciar as agressões oficialmen­te? “Sem provas, seria muito difícil fazer essa denúncia. Infelizmen­te, foram crimes que ficarão impunes para sempre.”

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HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

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