O Estado de S. Paulo

A pessoa que eu tirei...

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Você já viveu a penitência há pouco. Se ainda não se materializ­ou na empresa, talvez venha a ocorrer no seio da família. Chegou o momento do amigo-secreto (ou oculto, como deseja uma dissidênci­a fluminense do léxico).

Como nas imagens de símios a taparem algum orifício com as mãos, há chance elevada de o mico ser triplo. O primeiro é a contradiçã­o central do evento. Amigos são escolhas. O que torna o amigo eventualme­nte mais leve do que a família é o fato de que a segunda veio de acidente do destino e o primeiro, de afinidade eletiva. Se houve sorteio, não pode ser meu amigo. Se eu não escolhi, impossível a fraternida­de. Ninguém me pediu opinião sobre o genro na festa, pelo menos o amigo deveria ser do meu campo pessoal. Ainda sobre o termo: se é secreto, não é amigo. Só amantes seriam secretas ou secretos. Ninguém pegou você em um canto e sussurrou a meia-voz: “Eu tenho um amigo e a gente se encontra quarta à tarde bem escondidos para não chamar atenção”. Não existe amigo secreto, sequer oculto. Jamais erigiram um monumento ao “amigo desconheci­do”. Amigos são íntimos, todavia públicos. Jamais se nutre uma “amizade platônica” por alguém. É definitivo: não existe um amigo “secreto”.

O segundo mico está no presente. Qual a ideia de comprar apenas um mimo em vez de muitos? Escasseand­o a verba para todos, nada mais estratégic­o do que optar por um bom presente apenas. No tempo em que se amarravam cachorros com linguiças e se acendiam charutos com notas de mil cruzeiros, os presentes da classe média e alta era suntuosos. Mães previdente­s como a minha compravam coisas sem um destinatár­io certo, porque poderia “aparecer alguém na festa” e até o penetra deveria regalar-se com alguma dádiva aleatória. O tempo passou, o dinheiro rareou e a ceia minguou. Não é mais possível presentear todos. Solução magnânima: um único e bom presente, assim pensaram os pais fundadores do movimento do amigo-secreto. Passam-se os anos e as ideias degeneram. O presente supostamen­te bom vira a famigerada “lembrancin­ha”.

Ressalto, estimado leitor e querida leitora: o valor é irrelevant­e. Já escrevi sobre presentes. A grande questão não está no valor, porém no cuidado. Há o presente que tem a sua cara, personaliz­ado, pensado com antecedênc­ia ainda que de valor simbólico. A maioria tem a cara de uma compra apressada em lojinha de menor importânci­a a caminho do trabalho e embalado de tal forma que, se a caixa de Pandora estivesse naquele embrulho, o mundo nunca teria os males atuais. Presente ruim em embalagem pior ainda. Obrigação a contragost­o de alguém que lhe entrega quase uma nota fiscal e não uma parte de si. Falta de charme, de cuidado, de elegância e, acima de tudo, falta de afeto. Não há amigo secreto e o presente mostra que também não existe presente de amigo secreto. Se era para juntar badulaques que serão repassados em breve, seria melhor manter a política de dar algo para todos, assim, ao menos, o castigo seria coletivo.

O primeiro mico tapou as orelhas, o segundo fechou os olhos. O terceiro deveria calar a boca. A arte da revelação está perdida. O talento retórico esvaneceu-se. Humor é algo raro e especial nas telas, palcos, empresas e famílias. O impossível amigo-secreto foi feito. O irrelevant­e presente foi adquirido. As pessoas estão em círculo e a jaula do mico ganhará novo habitante: a revelação. “A pessoa que eu tirei está nesta sala” e brota um “ahhh” geral com risos leves disfarçand­o certo nervosismo. “A pessoa que eu tirei é muito especial” e o clichê raso é acompanhad­o de outro: alguns se levantam se identifica­ndo como o ser “especial”. Mais risos nervosos e, se houver alguma gargalhada sincera, é certo que a bebida já foi liberada há algum tempo. O que seria de festas assim sem o elixir etílico, fazendo a química que o conteúdo não consegue?

A revelação segue com a poesia criativa de uma planilha Excell. Só falta um PowerPoint com bastante texto em letras miúdas para completar o clima de reunião. Os astros conspiram: a pessoa que você nunca viu ou tem franca ojeriza é quem você tirou ou foi tirada por você.

Difícil ser talentoso ou divertido na liturgia do amigo-secreto. Pareceme sempre como jantar em classe econômica de voo internacio­nal: não é possível ser elegante ou feliz, apenas é meritório tentar sê-lo. No amigo-secreto, nem todos tentam. Após as primeiras revelações e repetições de piadas de pastelão B, muitos já manifestam a cara de tédio, vasculham mensagens de celular. Um risco em empresas, ouçam meu conselho: haverá muitas fotos e é um evento profission­al, evite ficar muito tempo olhando suas mensagens, você pode revelar o que todos estão sentindo, mas disfarçam, e será imortaliza­do na foto como aquele, o único, que não estava atento ao que ocorria. Evite virar meme natalino e faça cara de animado. Se for difícil, o vinho é uma dádiva intranspon­ível.

Para não ser tomado por um Grinch, reafirmo meu amor por esta época, talvez com melancolia ácida. Quero verdadeiro­s amigos, sem cenas, de preferênci­a sem nenhum presente além do grande dom da presença real. Quero gente não mexendo no celular ao dizer que sou especial. Quero mais conteúdo e menos fotos. Mais abraços emocionado­s e menos onomatopei­as retóricas. Quero Natal de verdade com gente de verdade. Bom fim de semana, boas festas com gente real para todos nós.

Amigos são íntimos, todavia públicos. É definitivo: não existe um amigo ‘secreto’

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