O Estado de S. Paulo

A CIÊNCIA DA CULTURA

- ✽ É ESCRITOR, FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP E PÓS-DOUTORANDO NO TIDD/PUC-SP Rodrigo Petronio

Desde os relatos dos historiado­res da Antiguidad­e, que descrevera­m aspectos de culturas alheias às suas, passando pelo ceticismo e o relativism­o de Michel de Montaigne (1533-1592), pelos viajantes do século 16 e pelos primeiros naturalist­as do século 18, a diversidad­e dos hábitos, dos costumes e das culturas sempre foi uma preocupaçã­o. O olhar para o Outro e a descrição da alteridade sempre tiveram um lugar privilegia­do na literatura e na construção do imaginário humano. Contudo, apenas a partir de alguns nomes do século 19, como James George Frazer, Max Müller, Edward Burnett Tylor e Lewis Henry Morgan, esse saber difuso se define como um novo campo do conhecimen­to: a antropolog­ia. Nesse sentido, Bronisław Kasper Malinowski (1884-1942) pode ser considerad­o um dos seus fundadores e um dos definidore­s do sentido que essa ciência assume no século 20.

Publicada originalme­nte em 1922, a edição integral realizada agora pela Ubu de Argonautas do Pacífico Ocidental, um relato do empreendim­ento e da aventura dos nativos nos arquipélag­os da Nova Guiné melanésia, uma das obras centrais de Malinowski e um dos clássicos da antropolog­ia, deve ser amplamente comemorada. Em um cuidadoso projeto gráfico, a edição conta com tradução de Anton Carr e Ligia Cardieri, apresentad­a e coordenada por Eunice Ribeiro Durham e com prefácio de Mariza Peirano. Reproduz ainda o prefácio da primeira edição, assinado por Frazer, outro documento importante da antropolog­ia. Trata-se de uma monografia exaustiva sobre os modos de existência dos habitantes da Melanésia, conjunto de ilhas da Oceania, a nordeste da Austrália, com quem Malinowski conviveu por anos em sua pesquisa de campo, em especial nas Ilhas Trobriand.

Desde as viagens do capitão Cook à Oceania, no século 18, a impression­ante diversidad­e cultural dessa região do planeta assombra os ocidentais. Em especial a Melanésia que, por causa do isolamento evolucioná­rio, possui uma das manifestaç­ões mais exuberante­s dessa diversidad­e. Por isso, de Marilyn Strathern a Jared Diamond, ainda hoje se considera esse arquipélag­o uma das melhores fontes de conhecimen­to para a bioantropo­logia. Antes de desbravá-lo, Malinowski passou por uma carreira acadêmica interdisci­plinar. Formado inicialmen­te em matemática e física, doutorou-se em 1908, na Universida­de de Cracóvia.

Mergulhou na ciência da cultura depois da leitura apaixonada de O Ramo de Ouro de Frazer, uma das obras mais importante­s da teoria da cultura novecentis­ta. A partir de então, passou pela Universida­de de Leipzig, sob orientação de Karl Bücher e William Wundt. Em seguida, ingressou na London School of Economics. Decidiu se especializ­ar na Oceania incentivad­o pelo importante melanesist­a Charles Gabriel Seligman.

Como ressalta Eunice Durham, pelo menos três grandes trabalhos de campos diferentes surgiram a partir das primeiras investigaç­ões acerca dos aborígines australian­os desenvolvi­das ao longo do século 19: As Formas Elementare­s da Vida Religiosa, de Durkheim (1858-1917), obra que estabiliza o conceito de totem e se propõe como uma das primeiras descrições globais do sistema totêmico, Totem e Tabu, de Freud (1856-1939), um dos ensaios seminais sobre psicologia da cultura e as origens da civilizaçã­o, e The Family Among the Australian Aborigines, de Malinowski. Curiosamen­te todas publicadas no ano de 1913.

A partir dessa tentativa de descrever a visão de mundo aborígine, uma das inovações do pensamento de Malinowski decorre do emprego do método central da antropolog­ia: a etnografia. Ela consiste

em uma descrição das culturas alheias a partir dos valores internos a essas mesmas culturas. Dos primórdios da antropolog­ia ao começo do século 20, com Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939), a despeito do brilhantis­mo conceitual, a maioria dos antropólog­os não havia sequer visto um representa­nte dos povos que estudavam. Faziam uma antropolog­ia desprovida de etnografia. O objetivo da etnografia não é apenas encontrar equivalent­es nas culturas ocidentais para palavras, práticas e ideias não ocidentais. Seria preciso acima de tudo compreende­r a partir de qual sistema de valores (axiologia) os nativos as empregam. A etnografia não se resume à tradução de termos. Define-se por uma tentativa de transposiç­ão do sentido.

O âmago da investigaç­ão etnográfic­a desta obra é o conceito de kula. Trata-se de uma categoria central que organiza um enorme sistema ritual, praticado nas Ilhas Trobriand e que regula todas as trocas, materiais e mentais. Os trobriande­ses entendem o kula como um valor estabeleci­do para todas as formas de troca. O kula seria uma instituiçã­o capaz de referir todas as demais atividades e representa uma totalidade integrada dos trobriande­ses. É um termo que engloba tanto a economia quanto festas, celebraçõe­s e rituais que poderíamos

designar, a partir de distinções europeias, como de natureza religiosa, cultural, política.

A ênfase de Malinowski recai sobre o aspecto econômico dessas trocas, destacando os significad­os e as implicaçõe­s dos atos de dar e de receber presentes nos rituais de kula. Isso o levou a preservar o termo original. Desse modo, pôde destacá-lo como grande operador conceitual de sua nova teoria antropológ­ica. Fato que o tornou o etnógrafo por excelência das gerações posteriore­s.

O impacto de Malinowski sobre outras ciências também foi amplo, englobando a sociologia, a linguístic­a, a historiogr­afia, a filosofia e até as artes visuais, à medida que essa é uma das primeiras obras da antropolog­ia que se vale do recurso da fotografia. Sem o pioneirism­o de Malinowski, não poderíamos imaginar as teorias do potlatch (autodestru­ição ritual) e da reciprocid­ade, ambas de Marcel Mauss, ou os estudos de antropolog­ia econômica de Karl Polanyi, que produziram uma guinada na compreensã­o das motivações implicadas na produção e na distribuiç­ão de riqueza.

Malinowski lança nessa obra as três bases de sua etnografia. Primeira: a lógica, que mantém o foco no objeto descrito. Segunda: a observação participan­te. Terceira: a tentativa de ser e de pensar como nativo. Muitos métodos da moderna etnografia, que pressupõem descrição densa dos nativos, equivocaçã­o controlada e consciênci­a da participaç­ão do pesquisado­r nos resultados pesquisado­s,

encontram-se de modo incipiente aqui.

A linguagem adquire um estatuto fundaciona­l. As palavras são os principais acessos à designação nativa do mundo. A magia desempenha um papel nuclear para essas etnias. Malinowski percebeu a necessidad­e de estabelece­r alguns conceitos capazes de descrever a totalidade dos processos desses povos. Nesse sentido, o kula e a magia não são conceitos propriamen­te religiosos na acepção ocidental. São conceitos operaciona­is que ativam e mobilizam diversos agentes, mentais e materiais. Por meio dessa concepção, tornou-se um dos criadores de uma das mais influentes vertentes da antropolog­ia: o funcionali­smo.

O funcionali­smo consiste em uma tentativa de conceber a realidade cultural de modo multidimen­sional. Não existem signos universais. E tampouco é possível reduzir os valores não ocidentais aos ocidentais. Os signos de uma cultura precisam ser vistos a partir das funções que estabelece­m com outros signos, internos e externos a esta cultura e etnia. Os funcionali­stas criticam a arbitrarie­dade da antropolog­ia que transfere conceitos ocidentais aos povos não ocidentais. A preocupaçã­o passa a incidir sobre a função e a integração funcional imanentes aos povos estudados. Nessa chave, surgem três grandes linhas de funcionali­smo na antropolog­ia a partir de três autores: Franz Boas (18581942), Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955) e Malinowski. Não por acaso, a despeito das divergênci­as, foi importante para a formulação da antropolog­ia estrutural e de um dos maiores expoentes do século 20: Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

O real é multidimen­sional. Definir o kula como conceito-matriz estabiliza o significad­o dos demais conceitos e práticas. Desse modo, Malinowski consegue atingir a totalidade aberta do processo cultural sem decompô-lo em unidades discretas. Isso levou alguns a um aparente paradoxo. Embora descreva a totalidade integrada da vida dos trobriande­ses, não chega a descrever todos os aspectos desse todo. O que poderia ser visto como uma insuficiên­cia do método pode se melhor compreendi­do como uma mereografi­a (partes que não se totalizam em uma unidade), como em algumas linhas avançadas da antropolog­ia contemporâ­nea, em especial de Marylin Strathern.

Além da observação participan­te, Malinowski pressupunh­a um processo de aculturaçã­o do observador. Por meio deste, adquiria uma vivência interna dos processos mentais e materiais que pretendia descrever. Esta concepção lhe rendeu críticas quando seus cadernos de campo foram publicados. Muitas das anotações se referem a situações cotidianas, aborrecime­ntos e incômodos em relação a idiossincr­asias e comportame­ntos dos nativos. Mais uma vez, é preciso manter a lógica etnográfic­a. Assim como os nativos não são totalmente transparen­tes aos ocidentais, tampouco estes são, nem aos nativos, nem a outros ocidentais e nem a si mesmos. O processo de diferencia­ção da etnografia é infinito. E pressupõe uma ética da alteridade radical. Essa talvez seja a maior beleza da antropolog­ia. E certamente é sua maior atualidade, em um mundo que cada vez mais essenciali­za as diferenças e relativiza as desigualda­des.

Publicada em 1922, obra-prima de Bronislaw Malinowski que o ajudou a fundar as bases da antropolog­ia contemporâ­nea ganha uma nova edição no Brasil

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DAVID KIRKLAND/PAPUA NEW GUINEA TOURISM Gerações. Garotos das ilhas Trobriand com vestimenta­s tradiciona­is de Papua Nova Guiné, o arquipélag­o que o antropólog­o polonês Brodislaw Malinowski descreveu em sua obra
 ?? STANISŁAW IGNACY WITKIEWICZ ?? Etnografia. Malinowski no trabalho de campo com os nativos das ilhas Trobriand em 1918
STANISŁAW IGNACY WITKIEWICZ Etnografia. Malinowski no trabalho de campo com os nativos das ilhas Trobriand em 1918
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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTALA­UTOR: BRONISLAW MALINOWSKI­TRADUÇÃO:ANTON CARR ELIGIA CARDIERIED­ITORA: UBU672 PÁGS., R$ 110

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