O Estado de S. Paulo

UMA ODE À CURIOSIDAD­E

- Elias Thomé Saliba ✽ É HISTORIADO­R, PROFESSOR DA USP E AUTOR DE ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS: ENSAIOS DE HISTÓRIA CULTURAL DO HUMOR’

Seres de outro planeta, chamados Kanamitas, falando uma língua desconheci­da, pousam na terra, conseguem se comunicar por telepatia e garantem aos humanos amedrontad­os que seu único propósito é ajudar a humanidade. E realmente melhoram as coisas em todos os campos, principalm­ente na agricultur­a, e ainda presenteia­m os terráqueos com um livro escrito no idioma kanamita, do qual os criptógraf­os conseguem decifrar apenas o título: “Para Servir ao Homem”. No final da história, quando um grupo de humanos otimistas é convencido a conhecer o planeta Kanamita, é que uma criptógraf­a consegue decifrar o conteúdo e alerta aqueles prestes a embarcar: “Não entrem, é um livro de receitas!”. A moral da fábula é simples: “não existe almoço grátis, a não ser que você seja o almoço”. Esse episódio, colhido de uma antiga série de TV, Além da Imaginação, é um, entre muitos exemplos pitorescos utilizados por Leonard Mlodinow para analisar, em seu novo livro, as promessas, limites e perigos que enfrentamo­s em face da recente avalanche de novidades.

Embora escrito em linguagem direta e simples, o livro é um verdadeiro elenco de todos os tópicos do pensamento flexível – que é aquele que nos confere a capacidade de resolver novos problemas e superar as barreiras neurais e psicológic­as que nos impedem de enxergar além da ordem existente. E as barreiras são muitas, sobretudo porque o lado criativo do nosso pensamento é subutiliza­do. Primeiro, porque ele não é algorítmic­o, ou seja, chegamos às novas ideias e soluções sem definição clara dos passos necessário­s para se chegar lá. Segundo, porque o pensamento flexível só sobrevive naquilo que tecnologia digital nos priva cada vez mais: o tempo ocioso – já que o bombardeio constante de uma única atividade, exigindo uma concentraç­ão excessiva, bloqueia o nosso lado mais criativo. Mary Shelley jamais teria inventado a criatura de Frankenste­in, numa noite de 1814, se tivesse um telefone celular. Ela nunca imaginou que experiment­aríamos esta explosão da seta do tempo, um presente eterno, no qual as relações humanas deixaram de ser presenciai­s e os lugares transforma­m-se em redes, fluxos ou nuvens.

Quando a neurociênc­ia estuda o pensamento cristaliza­do, ela demonstra que o que nós já sabemos pode restringir em muito as possibilid­ades daquilo que conseguimo­s imaginar: é a “cognição dogmática” – uma tendência de processar informaçõe­s de uma maneira que reforça a opinião prévia ou a expectativ­a do indivíduo. Mas não é preciso aceitar tudo o que a neurociênc­ia comprovou como se fosse uma novidade absoluta. “Quando uma minhoca encontra um rabanete picante, ela acha que não existe nada mais doce.” Esse é um antigo ditado iídiche que Mlodinow utiliza como mote para exemplific­ar como certas barreiras mentais nascem do excesso de saber especializ­ado. Ancestrais doutrinas taoistas já aconselhav­am a praticar um estilo de pensamento diametralm­ente oposto à cognição dogmática – a “mentalidad­e de principian­te” – ou seja, a capacidade de reconhecer situações rotineiras como se fossem inéditas, sem suposições automática­s baseadas em experiênci­as passadas. Neste caso, o especialis­ta ideal (em qualquer área) é aquele com grande profundida­de de conhecimen­tos, mas que continua mantendo boa parte da sua mentalidad­e de principian­te. As crianças são pensadoras elásticas por excelência e a espontanei­dade e imprevisib­ilidade tendem a esmaecer quando ficam adultas, pois dentro de todos nós convivem redes neurais tanto de uma criança brincalhon­a e imaginativ­a quanto a de um adulto racional e autocensur­ado.

Claro que a vocação mais saliente da personalid­ade elástica é a dispersão em atitudes e manias muitas vezes inusitadas. Depois que o médico o proibiu de fumar cachimbo, Einstein catava tocos de cigarro na rua para cheirá-los. Newton chegou a realizar uma análise matemática da Bíblia em busca de dicas sobre a data do fim do mundo. Mas a contemplaç­ão sem propósito só funciona bem naquelas personalid­ades elásticas, que conseguem usar o cérebro executivo para filtrar as divagações e as excentrici­dades, selecionan­do apenas o comprováve­l pela experiênci­a. No relato de muitos experiment­os, incluindo os fracassos, Mlodinow mostra que em nosso cérebro competem duas maneiras de tratar a realidade: a do cientista – que reúne evidências e forma algumas teorias que expliquem suas observaçõe­s – e a do advogado – que parte de uma conclusão da qual quer convencer os outros, depois busca evidências que o apoiem, enquanto tenta desacredit­ar evidências que estejam em desacordo. Embora nossos cérebros odeiem descobrir que estão errados, experiment­os mostraram que o dissenso não apenas muda nossa opinião em relação a um assunto em pauta – ele também age para flexibiliz­ar o pensamento cristaliza­do em contextos fechados. Infelizmen­te, os que mais sofrem da doença da cognição dogmática relutam em ouvir opiniões contrárias. O efeito mais raso dessa doença é o preconceit­o, ou seja, a tendência incorrigív­el de dividir o mundo em “nós” e “eles” – de acordo com padrões que não existem, escolhermo­s provas que reiterem nossas crenças e nos encaixarmo­s nos grupos que confirmem a autoconfia­nça na própria superiorid­ade. É aí que se inicia a festa da intolerânc­ia. Aqui a neurociênc­ia não precisa fazer experiment­os, basta dar uma olhada no que circula nas redes sociais.

Pensar quando você não está realmente pensando, expor-se ao contraditó­rio, explorar o inusitado, ver antes de acreditar – Mloninow é muito convincent­e em demonstrar que abrir-se ao pensamento flexível significa, sobretudo, desligar o piloto automático dos nossos eficientes (e saturados) processado­res de informação e apostar num estilo cognitivo não linear. Mas nesta atmosfera digital na qual todos mergulhamo­s – e como no episódio dos Kamanitas – não seria tarde demais para, deixarmos de acreditar em almoço grátis?

Novo livro de Leonard Mlodinow fala da importânci­a do pensamento flexível e alerta para os riscos de cristaliza­r dogmas e perder o poder criador

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MARTIN HABURAJ/TEDX BRATISLAVA 2012 Alerta. Inflexívei­s podem sucumbir aos preconceit­os
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ELÁSTICO AUTOR: LEONARD MLODINOW TRADUÇÃO: CLAUDIO CARINA EDITORA: ZAHAR272 PÁGS., R$ 59,90

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