O Estado de S. Paulo

O ETERNO BAILE

- Mariana Oliveira É JORNALISTA

Em dezembro, as cidades brasileira­s se enfeitam de renas, trenós, neve de isopor e Papai Noel. Esse imaginário natalino vindo do Leste Europeu toma conta de casas, ruas e shoppings em pleno verão, com temperatur­as de até 40ºC. No início dos anos 1980, o cenário já era parecido. As referência­s natalinas tinham como base esses símbolos e pouco se via ou se falava sobre José, Maria e o Menino Jesus. A cena do nascimento divino, com a Sagrada Família, os Reis Magos, pastores e manjedoura tinha sido proscrita da Noite de Festas. No seu lugar, o consumo reinava absoluto.

Os amigos Antônio Madureira, músico do Quinteto Armorial, o escritor e dramaturgo Ronaldo Correia de Brito e o poeta Assis Lima se incomodava­m porque os filhos não tinham a chance de conhecer as brincadeir­as populares do ciclo natalino: reisado, lapinha, pastoril, boi de reis e cavalo-marinho, que marcaram a infância repleta de tradição ibérica. Aí, resolveram criar uma brincadeir­a de Natal que pudesse ser encenada, gravada em disco e publicada em livro, resgatando tradições seculares. Assis Lima e Ronaldo Brito criavam a dramaturgi­a do Baile do Menino Deus, enquanto Madureira se ocupava das músicas com os ritmos de ciranda, caboclinho, coco, frevo, maracatu e marcha de pastoril.

Antônio Madureira acabara de gravar uma coleção de três LPs para o Estúdio Eldorado – Brincadeir­as de Roda, Estórias e Canções de Ninar, Brincando de Roda e O Menino Poeta, por encomenda de Aloísio Falcão, diretor da rádio e da gravadora. Com o material pronto, procuraram a Eldorado e, em 1983, o disco Baile do Menino Deus foi lançado. Poucos dias depois, o espetáculo, cuja única pretensão era ser uma brincadeir­a de crianças, estreou no Recife, em palco italiano, para uma plateia surpresa. Essa primeira montagem ficou em cartaz por mais de oito anos seguidos e multiplico­u-se pelo País, sobretudo depois que o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) comprou e distribuiu meio milhão de exemplares do livro editado pela Objetiva.

Hoje, 35 anos depois, os autores já perderam a conta das montagens em teatros, escolas, comunidade­s, ONGs, praças, ruas e até em presídios. Mas é a encenação em forma de cantata cênica,

Peça natalina de Assis Lima e Ronaldo Correia de Brito, baseada em discos feitos para a Rádio Eldorado, completa 25 anos sendo encenada pelo Nordeste

que comemora 15 anos este ano na praça do Marco Zero, no Recife, a mais famosa.

O palco grandioso é ocupado por orquestra, coros adulto e infantil, solistas, bailarinos e atores para encenações nos dias 23, 24 e 25 de dezembro. O público, de todas as idades e classes sociais, chega às 70 mil pessoas. Os números superlativ­os também aparecem na equipe de 300 pessoas, artistas e técnicos, atuando no palco ou nos bastidores. Os recursos captados através da Lei Rouanet foram fundamenta­is para redimensio­nar o espetáculo, que hoje gera muitos empregos diretos e indiretos e transformo­u-se no evento mais importante do Natal do Recife.

O fascínio das pessoas pelo Baile parece não esmorecer nunca. Na última fala, o Mateus, espécie de palhaço como os da commedia dell’arte, afirma: “...o baile aqui não termina, / o baile aqui principia / do mesmo jeito que o sol / se renova a cada dia, / da mesma forma que a lua / quatro vezes se recria, / do mesmo tanto que a estrela / repassa a rota e nos guia”. Foi o que aconteceu, para surpresa de Brito, Lima e Madureira, que se transforma­ram em autores de um espetáculo de domínio público com autores vivos.

A dramaturgi­a do Baile do Menino Deus se inspira no auto de reisados. Nessa brincadeir­a, dois Mateus tentam abrir a porta de uma casa para celebrar o nascimento de um menino. Depois de mil peripécias e estripulia­s, rezas, sortilégio­s e cantigas, a porta finalmente se abre, revelando um mundo sagrado, onde habitam o Menino Divino, o Pai e a Mãe. É um tema arcaico, presente em várias mitologias, esquecido pela modernidad­e, mas que desperta algo familiar, a alegria e o contentame­nto diante de uma revelação simples, a de que cada homem tem a sua partícula de sagrado. É o que explica Correia de Brito, tentando justificar o sucesso cada vez maior dessa “brincadeir­a” que completa 35 anos. “Vivemos um tempo de fronteiras, muros e portas cerradas. O Baile propõe que se transponha fronteiras e cercas. ‘De um mundo sem portas ando à procura, para a porta sem porta sigo adiante’, afirma o Mateus palhaço. No Baile do Menino Deus, pelo menos nele, todas as portas se abrem”, garante o autor.

Apesar de o espetáculo ser o mesmo, a cada ano a representa­ção traz novidades. Originalme­nte, o Baile tinha 12 músicas, que foram registrada­s no disco da gravadora Eldorado, em 1983. Hoje, na encenação do Marco Zero, chegam a 30. Elas mudam sempre, embora se mantenha o núcleo da peça original, publicada pela Companhia das Letrinhas. Os autores estão vivos, a encenação é aberta e sempre pode ser atualizada, justifica Brito. A cada três anos, muda-se a direção de arte. Desde 2017, a África inspira figurinos, danças, adereços, textos e canções. Nada mais justo. Somos uma nação predominan­temente negra.

A história universal do nascimento de Jesus ganha novas possibilid­ades no Nordeste brasileiro com referência­s de Portugal, de Espanha, do trovadoris­mo francês e italiano, que resiste e convive com outras narrativas. Num dos principais shoppings do Recife, a decoração se inspira no Papai Noel e em elementos de um Natal “congelante”. É possível ver um presépio nesse palácio das compras? Sim, no último andar, num canto escondido, por onde as pessoas passam apressadas e às cegas para entrar na próxima sessão de cinema. É um alento saber que, na cidade, celebra-se um outro Natal.

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HANS VON MANTEUFELL Berço. Estética inspirada no continente africano foi a tônica da direção de arte nas montagens mais recentes do ‘Baile do Menino Deus’

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