O DESCOMPASSO ENTRE CORPO E ALMA
Um corpo prensado entre a realidade biológica e a identificação com o gênero oposto. A agonia de “estar preso em um corpo errado” relatada pelos transexuais vem sendo respondida pela medicina com as cirurgias de adequação corporal, mas há aí uma angústia que não se esgota na materialidade da carne, advertem os psicanalistas Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos no livro Transexualidade: O Corpo entre o Sujeito e a Ciência, lançado pela Editora Zahar.
Patologizada como “transexualismo” e “disforia de gênero” pelas ciências médicas, a transexualidade tem uma abordagem distinta na psicanálise: não é o corpo que vai dizer se um sujeito é homem ou mulher, e não há aí hipótese de anormalidade. O cerne da publicação, fruto de três anos de pesquisa teórico-clínica feita no Instituto de Psicologia da UERJ, é interrogar a simplificação com que o tema vem sendo tratado na cultura e na medicina e abordar assuntos como a destransição, a homofobia e a plural sexualidade dos seres humanos. Pondera, sobretudo, sobre a atenção dada somente ao que cabe dentro da demanda por um novo corpo, em detrimento daquilo que escapa às expressões manifestas do sofrimento.
Coutinho Jorge conhece o discurso médico, uma vez que também é psiquiatra. Além disso, Travassos realiza trabalho voluntário com um grupo de cidadania LGBT. Mais do que de um corpo, é preciso falar de pessoas, defendem os autores, além de retirar a discussão da dicotomia normal x patológico e inscrevê-la em um espaço de singularidade, onde cada sujeito possui percursos próprios. Nesta entrevista ao Aliás, eles comentam os buracos existentes nas narrativas direcionadas à vulnerável população transexual no Brasil.
O que define a transexualidade?
Segundo a medicina, é o sentimento de incongruência entre o sexo e o gênero, levando um grande número de sujeitos que padecem desse sofrimento a demandar intervenções corporais, como hormonização e cirurgias, com o intuito de eliminar o mal-estar de “ter uma alma presa em um corpo que não é o seu”. O saber médico responde sem hesitar a “o que é ser homem ou mulher?” Para a psicanálise, essas são narrativas próprias de cada sujeito. Por isso diversos autores têm indagado se há transexualidade fora da medicina e seu aparato tecno-cirúrgico.
Quais as implicações de a transexualidade ser abordada pela dicotomia normal x patológico?
A mais negativa delas é a normatização da sexualidade. A descoberta freudiana do inconsciente subverte as fronteiras rígidas entre normal e patológico. Essa polarização promove respostas imediatas de adequação a padrões vigentes – culturais ou científicos –, que podem ter efeitos desastrosos. Veja-se a existência de casos de suicídio na população transexual, assim como o crescente número de casos de arrependimento e busca de destransição, isto é, pessoas que fizeram a transição de adequação sexual e depois se arrependeram, como é exposto no excelente documentário The Regretters, de Marcus Lindeen.
• Como a transexualidade pode ser pensada pela ótica da cultura e como fenômeno social? Trata-se de uma inscrição sexual contemporânea?
A transexualidade, como definida pela ciência médica, não parece ser uma inscrição sexual contemporânea, mas sim a tentativa de adequação do biológico sob a égide do gênero, constituindo um verdadeiro encarceramento. Sabemos que a circulação entre as insígnias masculina e feminina é antiga, mas é preciso ver que a demanda de intervenção no corpo só ocorreu a partir dos desenvolvimentos técnico-científicos. O corpo ganhou status de objeto de consumo e, se a medicina afirma que é possível subverter a ordem biológica para adequar o corpo à alma e apaziguar um mal-estar, por que não? O caso de Christine Jorgensen teve enorme repercussão mundial e produziu considerável crescimento de pedidos de adequação sexual, em relatos surpreendentemente idênticos ao que ela proferiu na mídia. Hoje, a propagação pelas redes sociais produz efeitos de contágio muito mais significativos.
• Qual o olhar da ciência sobre o corpo transexual e qual a importância da singularidade do sujeito frente às transformações físicas da medicina?
A ciência, sem levar em conta certas impossibilidades, promete felicidade ao eliminar o desconforto entre corpo e alma. É uma oferta tentadora, mas não coloca interrogações necessárias; afinal, uma mudança no corpo nem sempre produzirá o resultado satisfatório. A psicanálise valoriza o que a ciência descarta, ou seja, o sujeito e sua capacidade de elaboração dos conflitos. Para a psicanálise, o corpo é construído e revestido pela linguagem. O grave é que a resposta dada pela ciência ao transexual implica em intervenções corporais, em sua maioria irreversíveis. A psicanálise trabalha pela via do simbólico, ou seja, não se faz necessário marcar na carne. A linguagem permite que o sujeito circule entre diferentes elementos, se fazendo homem e mulher através de uma narrativa singular e variável. É mesmo necessário que se tenha um corpo de uma mulher para comportar feminilidade ou um corpo de homem para comportar masculinidade? Um corpo não faz de ninguém “homem” ou “mulher”.
Por que essas cirurgias devem ser ponderadas?
O número de casos de destransição revela os impasses inerentes à ênfase na mudança anatômica. São descritos também casos de depressão profunda e suicídio. Nem sempre a intervenção no corpo será uma saída satisfatória para apaziguar o conflito vivido pelas pessoas transexuais; além disso, ter um novo corpo é também ter uma nova
imagem, o que pode demandar apropriação pela linguagem. Os cuidados exigidos no período pós-operatório são pouco abordados. O uso contínuo de uma órtese vaginal implica em dores intensas, por exemplo. Enfim, o sujeito pode se deparar com uma insatisfação ainda maior e retornar ao estado anterior torna-se impossível.
O Brasil é o país que mais mata LGBTs. O que essa violência direcionada diz de nossa sociedade?
Essa violência retrata o grau de repressão sexual que vivemos. É diretamente proporcional ao nível do recalque da sexualidade presente nos indivíduos dessa sociedade. Aliás, outro aspecto relevante que constatamos, tanto na clínica quanto na cultura, foi a forte aliança entre a homofobia reinante e a transexualidade. A presença cada vez maior das homossexualidades na cultura contemporânea (despatologizacão, paradas LGBTI+ anuais, crescimento acentuado de manifestações explícitas bissexuais na adolescência, conquistas de direitos sociais, reconhecimento jurídico do casamento homoafetivo, etc.) não deixou de produzir uma forte reação da parcela ultraconservadora da sociedade. Assim, a homofobia cresceu em paralelo. É preciso entender que as homossexualidades são altamente subversivas em relação aos ideais ultraconservadores na medida em que elas são a presentificação em ato da falta de complementaridade “natural” entre os sexos masculino e feminino. Fica evidente que o apoio dado nas últimas décadas pela ciência e pela cultura à transexualização pode estar a serviço, em muitos casos, de uma homofobia da sociedade assim como da homofobia internalizada dos próprios homossexuais, que se revela na maioria das análises. Não à toa, hoje no Irã os homens homossexuais têm sido conduzidos compulsoriamente ao processo transexualizador.
Quais as particularidades da transexualidade em crianças e adolescentes?
A avaliação desses casos precisa ser feita com uma prudência redobrada e sempre com a participação de psicanalistas, pois as identificações de gênero nessa fase da vida são lábeis e nada conclusivas. Além disso, a fantasia da criança exercita de modo salutar essas identificações e, portanto, qualquer proposta de intervenção corporal deve ser colocada em suspenso. A prescrição de bloqueadores hormonais (indicado para casos de puberdade precoce) em alguns pré-púberes organicamente saudáveis, por exemplo, pode causar graves danos como a esterilização. Alguns médicos tentam explicar a transexualidade na criança através de exames de imagem cerebral, mas tal hipótese foi contestada por estudos sérios realizados pelo Johns Hopkins Hospital.
Que estratégias o País pode tomar de forma a reduzir a vulnerabilidade dessa população?
Garantir treinamento contínuo e formação permanente dos profissionais de saúde sobre as especificidades da saúde transexual, promover políticas públicas de acesso à saúde, educação e mercado de trabalho que visem a inclusão dessa população, incentivar espaços de discussão e escuta sobre a diversidade sexual. Não basta haver um protocolo de acesso ao processo transexualizador, é importante que se faça com qualidade.
Autores de livro a respeito da transexualidade advertem para os perigos das modificações corporais irreversíveis sem o devido amparo psicológico