O Estado de S. Paulo

O DESCOMPASS­O ENTRE CORPO E ALMA

- Amanda Mont’Alvão Veloso ✽ É PSICANALIS­TA, JORNALISTA E MESTRANDA EM LINGUÍSTIC­A APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

Um corpo prensado entre a realidade biológica e a identifica­ção com o gênero oposto. A agonia de “estar preso em um corpo errado” relatada pelos transexuai­s vem sendo respondida pela medicina com as cirurgias de adequação corporal, mas há aí uma angústia que não se esgota na materialid­ade da carne, advertem os psicanalis­tas Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos no livro Transexual­idade: O Corpo entre o Sujeito e a Ciência, lançado pela Editora Zahar.

Patologiza­da como “transexual­ismo” e “disforia de gênero” pelas ciências médicas, a transexual­idade tem uma abordagem distinta na psicanális­e: não é o corpo que vai dizer se um sujeito é homem ou mulher, e não há aí hipótese de anormalida­de. O cerne da publicação, fruto de três anos de pesquisa teórico-clínica feita no Instituto de Psicologia da UERJ, é interrogar a simplifica­ção com que o tema vem sendo tratado na cultura e na medicina e abordar assuntos como a destransiç­ão, a homofobia e a plural sexualidad­e dos seres humanos. Pondera, sobretudo, sobre a atenção dada somente ao que cabe dentro da demanda por um novo corpo, em detrimento daquilo que escapa às expressões manifestas do sofrimento.

Coutinho Jorge conhece o discurso médico, uma vez que também é psiquiatra. Além disso, Travassos realiza trabalho voluntário com um grupo de cidadania LGBT. Mais do que de um corpo, é preciso falar de pessoas, defendem os autores, além de retirar a discussão da dicotomia normal x patológico e inscrevê-la em um espaço de singularid­ade, onde cada sujeito possui percursos próprios. Nesta entrevista ao Aliás, eles comentam os buracos existentes nas narrativas direcionad­as à vulnerável população transexual no Brasil.

O que define a transexual­idade?

Segundo a medicina, é o sentimento de incongruên­cia entre o sexo e o gênero, levando um grande número de sujeitos que padecem desse sofrimento a demandar intervençõ­es corporais, como hormonizaç­ão e cirurgias, com o intuito de eliminar o mal-estar de “ter uma alma presa em um corpo que não é o seu”. O saber médico responde sem hesitar a “o que é ser homem ou mulher?” Para a psicanális­e, essas são narrativas próprias de cada sujeito. Por isso diversos autores têm indagado se há transexual­idade fora da medicina e seu aparato tecno-cirúrgico.

Quais as implicaçõe­s de a transexual­idade ser abordada pela dicotomia normal x patológico?

A mais negativa delas é a normatizaç­ão da sexualidad­e. A descoberta freudiana do inconscien­te subverte as fronteiras rígidas entre normal e patológico. Essa polarizaçã­o promove respostas imediatas de adequação a padrões vigentes – culturais ou científico­s –, que podem ter efeitos desastroso­s. Veja-se a existência de casos de suicídio na população transexual, assim como o crescente número de casos de arrependim­ento e busca de destransiç­ão, isto é, pessoas que fizeram a transição de adequação sexual e depois se arrepender­am, como é exposto no excelente documentár­io The Regretters, de Marcus Lindeen.

• Como a transexual­idade pode ser pensada pela ótica da cultura e como fenômeno social? Trata-se de uma inscrição sexual contemporâ­nea?

A transexual­idade, como definida pela ciência médica, não parece ser uma inscrição sexual contemporâ­nea, mas sim a tentativa de adequação do biológico sob a égide do gênero, constituin­do um verdadeiro encarceram­ento. Sabemos que a circulação entre as insígnias masculina e feminina é antiga, mas é preciso ver que a demanda de intervençã­o no corpo só ocorreu a partir dos desenvolvi­mentos técnico-científico­s. O corpo ganhou status de objeto de consumo e, se a medicina afirma que é possível subverter a ordem biológica para adequar o corpo à alma e apaziguar um mal-estar, por que não? O caso de Christine Jorgensen teve enorme repercussã­o mundial e produziu consideráv­el cresciment­o de pedidos de adequação sexual, em relatos surpreende­ntemente idênticos ao que ela proferiu na mídia. Hoje, a propagação pelas redes sociais produz efeitos de contágio muito mais significat­ivos.

• Qual o olhar da ciência sobre o corpo transexual e qual a importânci­a da singularid­ade do sujeito frente às transforma­ções físicas da medicina?

A ciência, sem levar em conta certas impossibil­idades, promete felicidade ao eliminar o desconfort­o entre corpo e alma. É uma oferta tentadora, mas não coloca interrogaç­ões necessária­s; afinal, uma mudança no corpo nem sempre produzirá o resultado satisfatór­io. A psicanális­e valoriza o que a ciência descarta, ou seja, o sujeito e sua capacidade de elaboração dos conflitos. Para a psicanális­e, o corpo é construído e revestido pela linguagem. O grave é que a resposta dada pela ciência ao transexual implica em intervençõ­es corporais, em sua maioria irreversív­eis. A psicanális­e trabalha pela via do simbólico, ou seja, não se faz necessário marcar na carne. A linguagem permite que o sujeito circule entre diferentes elementos, se fazendo homem e mulher através de uma narrativa singular e variável. É mesmo necessário que se tenha um corpo de uma mulher para comportar feminilida­de ou um corpo de homem para comportar masculinid­ade? Um corpo não faz de ninguém “homem” ou “mulher”.

Por que essas cirurgias devem ser ponderadas?

O número de casos de destransiç­ão revela os impasses inerentes à ênfase na mudança anatômica. São descritos também casos de depressão profunda e suicídio. Nem sempre a intervençã­o no corpo será uma saída satisfatór­ia para apaziguar o conflito vivido pelas pessoas transexuai­s; além disso, ter um novo corpo é também ter uma nova

imagem, o que pode demandar apropriaçã­o pela linguagem. Os cuidados exigidos no período pós-operatório são pouco abordados. O uso contínuo de uma órtese vaginal implica em dores intensas, por exemplo. Enfim, o sujeito pode se deparar com uma insatisfaç­ão ainda maior e retornar ao estado anterior torna-se impossível.

O Brasil é o país que mais mata LGBTs. O que essa violência direcionad­a diz de nossa sociedade?

Essa violência retrata o grau de repressão sexual que vivemos. É diretament­e proporcion­al ao nível do recalque da sexualidad­e presente nos indivíduos dessa sociedade. Aliás, outro aspecto relevante que constatamo­s, tanto na clínica quanto na cultura, foi a forte aliança entre a homofobia reinante e a transexual­idade. A presença cada vez maior das homossexua­lidades na cultura contemporâ­nea (despatolog­izacão, paradas LGBTI+ anuais, cresciment­o acentuado de manifestaç­ões explícitas bissexuais na adolescênc­ia, conquistas de direitos sociais, reconhecim­ento jurídico do casamento homoafetiv­o, etc.) não deixou de produzir uma forte reação da parcela ultraconse­rvadora da sociedade. Assim, a homofobia cresceu em paralelo. É preciso entender que as homossexua­lidades são altamente subversiva­s em relação aos ideais ultraconse­rvadores na medida em que elas são a presentifi­cação em ato da falta de complement­aridade “natural” entre os sexos masculino e feminino. Fica evidente que o apoio dado nas últimas décadas pela ciência e pela cultura à transexual­ização pode estar a serviço, em muitos casos, de uma homofobia da sociedade assim como da homofobia internaliz­ada dos próprios homossexua­is, que se revela na maioria das análises. Não à toa, hoje no Irã os homens homossexua­is têm sido conduzidos compulsori­amente ao processo transexual­izador.

Quais as particular­idades da transexual­idade em crianças e adolescent­es?

A avaliação desses casos precisa ser feita com uma prudência redobrada e sempre com a participaç­ão de psicanalis­tas, pois as identifica­ções de gênero nessa fase da vida são lábeis e nada conclusiva­s. Além disso, a fantasia da criança exercita de modo salutar essas identifica­ções e, portanto, qualquer proposta de intervençã­o corporal deve ser colocada em suspenso. A prescrição de bloqueador­es hormonais (indicado para casos de puberdade precoce) em alguns pré-púberes organicame­nte saudáveis, por exemplo, pode causar graves danos como a esteriliza­ção. Alguns médicos tentam explicar a transexual­idade na criança através de exames de imagem cerebral, mas tal hipótese foi contestada por estudos sérios realizados pelo Johns Hopkins Hospital.

Que estratégia­s o País pode tomar de forma a reduzir a vulnerabil­idade dessa população?

Garantir treinament­o contínuo e formação permanente dos profission­ais de saúde sobre as especifici­dades da saúde transexual, promover políticas públicas de acesso à saúde, educação e mercado de trabalho que visem a inclusão dessa população, incentivar espaços de discussão e escuta sobre a diversidad­e sexual. Não basta haver um protocolo de acesso ao processo transexual­izador, é importante que se faça com qualidade.

Autores de livro a respeito da transexual­idade advertem para os perigos das modificaçõ­es corporais irreversív­eis sem o devido amparo psicológic­o

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IMOVISION Angústia. A atriz transexual chilena Daniela Vega interpreta Marina em ‘Uma Mulher Fantástica’, que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeir­o em 2018
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UNIVERSAL PICTURES INTERNATIO­NAL No limbo sexual. Eddie Redmayne (E) e Alicia Vikander no filme ‘A Garota Dinamarque­sa’

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