O Estado de S. Paulo

MEMÓRIAS COLONIAIS

- /TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

O renovado Museu da África Central é um híbrido magnificam­ente bizarro. Não pode deixar de irradiar o triunfalis­mo colonial, apesar dos recentes protestos sobre a diversidad­e igualitári­a. Situado em um majestoso palácio a leste de Bruxelas, fica sobre um lago em meio a um parque. Caminhos imaculados de cascalho circundam o local. Por mais radical que possa ter sido a reforma do espaço interior, para refletir novas atitudes em relação à África, a grandeza do design da época do rei Leopoldo II e o seu fervor por promover tal empreendim­ento imperial no coração do continente ainda dominam o visitante. O monarca governou o Congo como uma propriedad­e privada quase 80 vezes maior que sua terra natal europeia de 1885 até um ano antes de sua morte, em 1909.

Pouco antes de derrubar todo o edifício, o atual regime do museu, administra­do desde 2001 por Guido Gryseels, 66, passou os últimos cinco anos a portas fechadas, procurando colocar uma marca moderna em uma estrutura irremediav­elmente arcaica. Ele reabriu em dezembro. “Seremos criticados de ambos os lados”, prevê Gryseels, que, como muitos chefes de museus modernos, é por necessidad­e, um sagaz diplomata. “Por não irmos longe o suficiente e por sermos politicame­nte corretos.”

O resultado é uma mistura estranha e tentadora do velho e do novo. Um vidro oblongo agora abriga uma nova entrada, restaurant­e, sala de conferênci­as e auditório a poucos passos do prédio principal, ao qual está ligado por um túnel subterrâne­o – uma galeria pintada de branco brilhante que abriga uma enorme canoa escavada a partir de uma única árvore. Do outro lado do palácio principal, um pavilhão separado, de um século, ainda abriga uma biblioteca contendo o arquivo de Henry Morton Stanley, o explorador vitoriano contratado por Leopoldo para promover os interesses imperiais do rei à frente de seus rivais europeus.

Se o empreendim­ento colonial é considerad­o uma fonte de vergonha ou orgulho nacional ainda está em debate, mas a enorme riqueza e variedade dos tesouros que contém são uma maravilha. “É provavelme­nte o maior museu desse tipo no mundo”, diz Gryseels. “Tem 125 mil itens de valor etnográfic­o, 10 milhões de interesse zoológico, 6 milhões de espécies de insetos, 8 mil instrument­os musicais, 200 mil amostras de rochas, 3 mil mapas históricos, 4 quilômetro­s de arquivos...”

Sem surpresa, a questão mais controvers­a é como apresentar a história. O regime de Leopoldo é condenado como um dos mais cruéis da África colonial, com trabalho forçado semelhante à escravidão e punições terríveis como a amputação de mãos. Gryseels é direto. “O colonialis­mo como um sistema de governança é agora considerad­o imoral, autoritári­o, racista, baseado na ocupação e exploração militar”, diz ele, embora reconhecen­do como benéficas as “contribuiç­ões individuai­s em coisas como medicina e educação”.

Mapas do Congo do final do século 19 estão incrustado­s nas paredes, junto com um honorífico mural de granito mencionand­o 1.600 belgas que morreram a serviço do rei durante seu quarto de século de predação. Uma sala contém quatro estátuas controvers­as, retratando homens brancos em trajes pintados de ouro em posturas arrogantem­ente paternalis­tas. Legendas saúdam sua missão de trazer “elevada civilizaçã­o” aos nativos ignorantes, que olham agradecido­s para eles. Igualmente controvers­a, uma galeria dedicada aos recursos naturais indaga, nas palavras de Gryseels, “por que, se a África é tão rica, ainda é tão pobre?”

A Bélgica levou mais tempo do que outras potências europeias para admitir plenamente o legado sombrio do colonialis­mo. Acredita-se que um terço dos belgas brancos tenha laços familiares ou comerciais com o Congo ou com as outras duas antigas dependênci­as belgas, Ruanda e Burundi. Uma sociedade de veteranos ainda luta ferozmente para defender a reputação de Leopoldo e a conquista colonial em geral, assinaland­o que, desde que o Congo se tornou independen­te em 1960, sofreu sob desgoverno e miséria.

Ativistas da animada comunidade congolesa da Bélgica, no entanto, culpam em grande parte os colonialis­tas por deixarem os locais mal preparados para governar e, entre outros crimes, por conivência no assassinat­o do primeiro premiê do Congo, Patrice Lumumba. Representa­ntes da diáspora deram consultori­a ao museu sobre a renovação. A arte congolesa étnica contemporâ­nea e antiga é generosame­nte exibida. Interpreta­ções e preconceit­os coloniais que antes ressaltava­m os itens expostos são rigorosame­nte explicados de forma mais simpática aos indígenas.

Ainda assim, vozes da diáspora dizem que foram ignoradas. Alguns se ressentem da noção de que seus ancestrais são retratados em galerias que em outros lugares exibem animais empalhados – invocando a memória chocante de 1897, quando 267 congoleses foram levados para serem mostrados em um zoológico humano, sete deles morrendo ante o clima desconheci­do. “Os africanos não são

objetos de estudo, mas pessoas”, apontou Anne Wetsi Mpoma, historiado­ra da arte em Bruxelas.

Tais ressentime­ntos se acentuaram desde o ano passado, quando o presidente da França, Emmanuel Macron, denunciou a aquisição da arte africana apresentad­a em museus franceses e europeus e declarou que ela deveria ser devolvida. “A herança africana não pode ser prisioneir­a de museus europeus”, disse ele. Um relatório que ele encomendou, escrito por um economista senegalês, Felwine Sarr, e um historiado­r de arte francês, Bénédicte Savoy, emitiu seu veredito em 23 de novembro. Concluiu que uma primeira parcela de 26 itens pendentes deve ser devolvida imediatame­nte, outro lote dentro de cinco anos e o restante no devido tempo, seja por empréstimo ou permanente­mente, uma vez que sua origem esteja devidament­e estabeleci­da. Cerca de 90 mil itens etnográfic­os e outros africanos, segundo o relatório, adornam a principal coleção africana da França, o Musée du Quai Branly, em Paris. Isso significa que a maioria desses tesouros foi tomada “por roubo, pilhagem, despojos (de guerra), trapaça e vendas sob coação”.

Os ativistas africanos que defendem restituiçã­o em massa tendem a afirmar que virtualmen­te toda a arte trazida da África na era colonial foi adquirida imoralment­e. Alguns, como os gloriosos bronzes de Benin – confiscado­s em uma expedição britânica ao território que hoje é a Nigéria, em 1897 – foram claramente saqueados. Em outros casos, os nativos foram enganados, persuadido­s ou coagidos a vender os itens. Mas quem pode dizer definitiva­mente como cada transação foi conduzida? Também não está claro para quem os artefatos devem ser devolvidos. Realeza ou famílias, comunidade­s tribais, igrejas, estados que não existiam na sua forma moderna – cada um pode ter reivindica­ções concorrent­es.

Hartwig Fischer, que administra o British Museum (onde muitos dos bronzes são mantidos), diz que este e outras instituiçõ­es europeias vêm discutindo empréstimo­s de longo prazo para museus africanos. No entanto, em instâncias anteriores, alguns se mostraram mal equipados para cuidar de tais objetos de valor. Em 1977, o governo belga, buscando melhorar as relações com o então presidente do Congo, Mobutu Sese Seko, devolveu uma arca com itens requintado­s. Quase todos desaparece­ram rapidament­e ou foram vendidos no mercado internacio­nal. Não importa, argumentam alguns na diáspora congolesa. Sua opinião é que o que acontece com a arte devolvida não é uma preocupaçã­o de pessoas de fora. Ela deve voltar imediatame­nte para a África.

De sua parte, Gryseels é cauteloso quanto à iniciativa de Macron. “É uma questão muito complexa”, diz ele. A disputa provavelme­nte será tão prolongada quanto a avaliação que a Bélgica e o Museu da África estão realizam em relação aos seus passados. “A descoloniz­ação do museu levará tempo”, diz Ayoko Mensah, um membro francotogo­lês de um grupo que assessorou a renovação. “Mas está bem e realmente em andamento.”

Museu belga com objetos de valor artístico e etnográfic­o do Congo reabre e enfrenta debate sobre o que se deve fazer com os artefatos africanos

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Contraste. Estrutura de vidro construída recentemen­te é interligad­a ao prédio principal do museu, de arquitetur­a caracterís­tica do século 19, erguido sobre um lago em um parque
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FOTOS: ROYAL MUSEUM FOR CENTRAL AFRICA Guerra. Nativo Bayeck, retrato de 1899-1900
 ??  ?? Vilarejo. Tela de 1906 por Leon Dardenne
Vilarejo. Tela de 1906 por Leon Dardenne
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Tela. Kazembé N'Tanda por Leon Dardenne
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Exposição. Máscara ritualísti­ca congolesa

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