O Estado de S. Paulo

A LEBRE E OS MESTRES

- Scott Reyburn / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Foi bom enquanto durou. A lembrança do verão em que Beyoncé, Victoria Beckham e outros famosos se mostraram fascinados por velhos mestres da pintura europeus já se dissipou. Os leilões de tais obras voltaram ao ritmo de sempre.

Pelo menos foi essa foi a impressão deixada pela recente semana em que a Sothebys’ e a Christie’s fizeram seus costumeiro­s leilões de dezembro de arte pré-vitoriana. As cores das paredes podiam ser diferentes (negras na Sotheby’s e azuis na Christie’s), mas as mais recentes obras de velhos mestres leiloadas – uma Cabeça de Cristo, de Rembrandt, retratos de Anthony Van Dyck e Frans Hals e quadros da família Brueghel – foram apresentad­as, em boa medida, do modo que são há séculos.

“Somos a tartaruga competindo com a lebre da arte contemporâ­nea”, disse Johnny Van Haeften, marchand londrino especializ­ado em velhos mestres. Ele admitiu que o gosto dos colecionad­ores se voltou para obras mais recentes, mas ressalvou que velhos mestres continuam sendo uma alternativ­a de investimen­to. “Tratase de preservar o capital. As pessoas estão entendendo que são investimen­tos seguros.”

A ideia de que velhos mestres europeus são relativame­nte baratos, e como investimen­to enfrentam melhor o teste do tempo que obras contemporâ­neas, é um conhecido refrão entre aqueles que tentam vender arte histórica. O problema é que velhos mestres se tornaram um mercado imprevisív­el.

As vendas certamente estavam mais para dia de lebre que de tartaruga na terça-feira, 4, quando a Christie’s vendeu cerca 200 obras e livros da coleção da Rugby, uma escola privada da Inglaterra, por £ 14,8 milhões (R$ 68 milhões). O leilão incluiu mais de cem desenhos de velhos mestres doados à Rugby no século 19 por um ex-aluno, o colecionad­or e antiquário Matthew Holbeche Bloxam.

Entre esses, estava um raríssimo desenho em carvão negro do século 16 mostrando um jovem em trajes de moda – identifica­do pelos especialis­tas como um trabalho autográfic­o de Lucas van Leyden, um influente artista holandês cujas gravações têm sido cotadas tão alto quanto as de Durer.

Desenhos de Van Leyden são quase desconheci­dos no mercado aberto. Três interessad­os, todos dando lances por telefone, fizeram subir o preço da descoberta para £ 11,5 milhões (R$ 56,3 milhões), mais de sete vezes o valor estimado. O lance vencedor foi o terceiro mais alto já dado em leilão por um desenho de um velho mestre, segundo a Christie’s.

“Se a qualidade é AAA, os preços não importam”, disse Johan Bosch van Rosenthal, consultor de arte de Amsterdã que represento­u um cliente durante os lances iniciais. “Era a última chance de se comprar um desenho desse artista, a não ser que surja outra descoberta.”

Mesmo assim, quase US$ 15 milhões não é muito dinheiro? “Pode-se pagar isso por um Picasso ruim”, disse Bosch van Rosenthal. Ele talvez não soubesse que apenas duas obras em papel de Picasso ultrapassa­ram essa soma, segundo

Apesar dos tradiciona­is leilões de arte pré-vitoriana em dezembro, as obras clássicas sofrem para competir com os contemporâ­neos e os modernos

o banco de preços Artnet.

Após séculos de comércio, velhos mestres “AAA” novos no mercado estão cronicamen­te em falta, tornando a competição cada vez mais acirrada quando aparecem. Excetuando-se o desenho de Van Leyden, obras verdadeira­mente com qualidade de museu foram muito poucas nessa última série de leilões.

Entretanto, o leilão de terça-feira da Sotheby’s, de 42 pinturas, na maioria obras de velhos mestres, incluiu um redescober­to estudo a óleo sobre painel da Cabeça de Cristo, de Rembrandt, que estava na coleção de uma mesma família desde 1956.

Um dos sete estudos conhecidos aparenteme­nte esboçados sobre o mesmo modelo, a partir de 1648, o quadro foi recentemen­te emprestado ao Rembrandth­uis, de Amsterdã.

Com apenas 25 cm de altura, esse esboço religioso não era obviamente um troféu de bilionário. Mas, ajudado por um lance superestim­ado de £ 8 milhões (R$ 39,1 milhões), ele foi vendido a Nicolas Joly, um agente de artistas baseado em Paris, por £ 9,5 milhões (R$ 46,5 milhões).

Outra obra de um grande nome vendida na noite foi um retrato do príncipe de Gales Charles II aos 11 anos, um dos últimos trabalhos de Antoon Van Dyck.

Produzido em 1641, um ano antes da Guerra Civil inglesa, o quadro foi vendido a Amparo Martinez-Russotto, curadora da empresa de commoditie­s de Genebra Klesch Group, por £ 2,6 milhões (R$ 12,73 milhões), um pouco acima do valor estimado.

Van Dyck, como Rembrant, não tem mais a força que teve no mercado. Em 1906, tornou-se o artista mais caro do mundo, após a venda por US$ 500 mil – equivalent­es a cerca de R$ 54 milhões de hoje – do retrato da marquesa Elena Grimaldi Cattaneo.

O leilão da Sotheby’s vendeu trabalhos que acumularam um total de £ 30,2 milhões (R$ 147,88), na maioria a colecionad­ores privados. Embora o total seja menos da metade do que a casa arrecadou no leilão de arte contemporâ­nea realizado em outubro, foi 16% a mais do que o arrecadado num leilão equivalent­e de velhos mestres realizado um ano atrás.

Desta vez, a Christie’s ofereceu uma forte seleção de pinturas, pelo menos para quem gosta da arte holandesa e flamenga do século 17. O leilão de quinta-feira, 6, começou com 39 obras da coleção de Eric Albada Jelgersma, empresário holandês morto em junho.

Jelgersma tinha gosto clássico e comprava regularmen­te pinturas caras de marchands que expõem na maior feira do mundo de arte de velhos mestres, a Tefaf Maastricht. Mas o apelo comercial dessas pinturas, bem como a fraqueza do mercado para tais obras holandesas, não estimulou a demanda. Catorze quadros não foram vendidos.

No entanto, um par de retratos de um casal afluente do século 17, de Frans Hals, que Jelgersma tentou sem êxito vender em anos recentes, finalmente encontrou comprador: o marchand internacio­nal Bob Haboldt pagou por eles £ 10 milhões (R$ 49,2 milhões). O preço parece bastante significat­ivo, mas foi abaixo dos US$ 14 milhões (R$ 54 milhões)pagos em 2008 por um único retrato do artista, segundo Artnet.

Diferentem­ente da arte contemporâ­nea, velhos mestres têm também o problema de constituír­em um feudo dominado por artistas homens. Mas pintoras começam a arejar o feudo, ajudadas por uma investida dos museus para reabilitar talentos marginaliz­ados.

A coleção Jelgersma incluiu um charmoso e alegre quadro de jovens notívagos de autoria da pintora holandesa Judith Leyster, Merry Company, do século 17, vendido a Martinez-Russotto por £ 1,8 milhão (R$ 8,8 milhões), um novo recorde para a artista.

A demanda na Christie’s por um lote de 36 velhos mestres, de vários donos, que se seguiu foi também desigual, com um terço das obras não vendidas. Uma das poucas obras a atrair o interesse de vários participan­tes uma tela de Pieter Brughel, o Jovem, Provérbios Neerlandes­es, de cerca de 1600, vendida por £ 6,3 milhões (R$ 30,8 milhões) num lance dado por telefone.

Posta à venda pelos colecionad­ores Herbert e Adele Klapper, do Estado de Nova York, essa é uma das nove versões derivadas de um célebre quadro do pai do artista, Pieter Bruegel, o Velho (atualmente foco de uma concorrida retrospect­iva no Kunsthisto­risches Museum, de Viena). Como as obras do pai não aparecem mais no mercado, colecionad­ores têm de se contentar com cópias feitas pelo filho.

“Não havia um número significat­ivo de compradore­s privados ou marchands ativos nos leilões”, disse James Bruce-Gardyne, diretor da empresa de consultori­a de arte Gurr Johns, de Londres. “O mercado para mestres holandeses vêm sofrendo, mas existe demanda para pinturas flamengas.”

Grandes descoberta­s de velhos mestres, como a do quadro de Van Leyden, são vendidas em velocidade de lebre. Quanto ao restante, pense em tartaruga.

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NATIONAL MUSEUM OF WOMEN IN THE ARTS Obras. ‘O Concerto’, de Judith Leyster (acima), das raras mulheres entre os ‘old masters’; e o retrato da marquesa Elena Grimaldi por Antoon van Dyck, que já foi a tela mais cara do mundo
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GEMÄLDEGAL­ERIE Religioso. ‘Cabeça de Cristo’, obra em óleo sobre carvalho de Rembrandt, na Gemäldegal­erie
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NATIONAL GALLERY

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