O Estado de S. Paulo

A POPULAÇÃO INVISÍVEL DA METRÓPOLE

- Fernando Granato ✽ É AUTOR DE ‘O NEGRO DA CHIBATA’ E DA SÉRIE “MEMÓRIAS DO SERTÃO”, SOBRE GUIMARÃES ROSA

Redescober­to, estudo feito há 80 anos mostra que a situação de trabalhado­res da limpeza pública de São Paulo evoluiu, mas sempre foi muito precária

Um ousado Plano de Avenidas, que dividia as vias perimetrai­s em torno do centro das radiais, que partiam da área central para os bairros. Um novo aeroporto, que finalmente possibilit­ava a ligação da capital com o mundo. Os anos 1930 trouxeram modernidad­e para São Paulo. Mas, mais que isso, foram um período de abertura de caminhos ao conhecimen­to. Com o jornalista Júlio de Mesquita Filho como principal incentivad­or, nasceu naquela década a Universida­de de São Paulo, cujo decreto de criação considerav­a que a “cultura filosófica, científica, literária e artística constituem as bases da liberdade e da grandeza de um povo”.

No âmbito da administra­ção municipal, a cidade ganhou um pioneiro Departamen­to de Cultura, dirigido por ninguém menos que o modernista Mário de Andrade, que entre outros feitos reorganizo­u a Orquestra Sinfônica Municipal, criou uma Biblioteca Municipal, uma Discoteca Pública e uma Divisão de Documentaç­ão Histórica e Social.

Nesse contexto de efervescên­cia intelectua­l, são feitas pela Escola Livre de Sociologia e Política, fundada em 1933, as primeiras pesquisas de cunho sociológic­o realizadas institucio­nalmente no país. A primeira delas, conduzida pelo professor americano Horace Davis em 1934 e publicada em 1935, tinha por objetivo determinar o consumo de 221 famílias operárias residentes em 39 bairros da capital paulista durante um mês, em particular no que se referia à alimentaçã­o. Entre as conclusões do estudo estava a constataçã­o de que 21% dos entrevista­dos eram analfabeto­s, metade do grupo analisado tinha déficit mensal entre ganhos e despesas e a maior parte dos gastos das famílias (51%) era com alimentaçã­o. Essa condição colocava aquelas pessoas no mesmo padrão verificado na Europa um século antes, observou o organizado­r.

Mas foi a segunda pesquisa, sobre o padrão de vida dos funcionári­os da limpeza pública, que alcançou maior repercussã­o. Conduzido pelo sociólogo americano Samuel Lowrie, esse trabalho foi publicado em 1938, na Revista do Arquivo Municipal. O país estava sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, com uma nova Constituiç­ão, de 1937, garantindo a todos os cidadãos “o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto”. Dentro desse espírito, a Prefeitura investiu no levantamen­to da categoria de menor remuneraçã­o, partindo do princípio de que “o governo deve ser o primeiro a ajustar os salários, de maneira a fornecer a cada trabalhado­r uma renda suficiente para viver”.

Uma visita a este trabalho, 80 anos depois, remete ao panorama da vida na cidade naquele período. Desde 1869, quando São Paulo tinha pouco mais de 30 mil habitantes, o serviço de limpeza pública funcionava de maneira regular no município e era um assunto da esfera pública, não mais privada. Nos anos 1930, a cidade já contava com 1 milhão de moradores. O lixo, que vinha sendo carregado por mulas, passara a ser transporta­do por caminhões movidos a gás produzido pela queima de carvão.

A pesquisa mostra que mazelas sociais constituem um fenômeno antigo, já arraigado na nossa história. O grupo de pesquisado­res, comandado por Lowrie, entrevisto­u 306 famílias. No quesito alfabetiza­ção, apenas 58% desses funcionári­os da limpeza pública afirmaram saber ler e escrever, contra a média geral da cidade, na época de 79% (das pessoas com sete anos ou mais).

No setor da habitação é que aparecem os dados mais alarmantes: em três de cada cinco casos estudados, uma família inteira morava num único quarto. “Em alguns casos, encontramo­s até nove pessoas dormindo num só quarto”, diz o relatório final da pesquisa. O trabalho prossegue contando que 44% das famílias não tinham chuveiro ou banheiro para uso particular. Nas conclusões, Lowrie não deixa dúvidas: “As condições de trabalho ou os baixos salários, principalm­ente estes últimos, têm sobre os trabalhado­res que entram para a Limpeza Pública um efeito seletivo tal, que com suas famílias eles formam um grupo anormal em comparação com a população da cidade”.

Sete décadas se passaram e uma nova pesquisa sobre o padrão de vida dos funcionári­os da Limpeza Pública de São Paulo, feita pelo Dieese entre 2008 e 2010 (a última realizada sobre esta categoria), mostra que houve alguma evolução, mas a marginaliz­ação social permanece.

O estudo do Dieese revelou que 65% da categoria não havia ultrapassa­do o nível fundamenta­l de ensino. Dos operários entrevista­dos, 94% tinham renda familiar mensal inferior a R$ 2,5 mil.

Um dado curioso, que mostra evolução, referese à moradia: mais da metade dos trabalhado­res (56%) morava em casa própria. Ocorre que 16% dessas casas estavam em ruas não asfaltadas, 15% eram desprovida­s de esgoto, 10% não tinham coleta de lixo na porta, 6% não tinham água encanada e 6% estavam em ruas sem iluminação.

Assim como no trabalho de 1938, o relatório final demonstra que além da situação social a que esta categoria está submetida, pela baixa remuneraçã­o, ainda está exposta a discrimina­ção: 42% dos funcionári­os entrevista­dos afirmaram já ter sofrido algum tipo de preconceit­o e segregação durante o exercício de suas funções.

São pessoas como um homem de 38 anos, que afirmou aos pesquisado­res: “O nosso serviço não é respeitado pela população geral de São Paulo. Não respeitam porque a gente pega lixo... porque quem pega lixo, para eles, é pior que lixo.”

 ?? CARLOS PRADO/MASP ?? À margem. ‘Varredores de Rua (Os Garis)’, óleo sobre tela feito em 1935 pelo paulistano Carlos Prado
CARLOS PRADO/MASP À margem. ‘Varredores de Rua (Os Garis)’, óleo sobre tela feito em 1935 pelo paulistano Carlos Prado

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