O Estado de S. Paulo

Uma MP turbulenta

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Causa preocupaçã­o a rapidez com que foram liberados 100% de capital estrangeir­o nas aéreas.

Há anos, o Congresso vinha discutindo o limite de participaç­ão do capital estrangeir­o nas companhias aéreas brasileira­s sem, no entanto, chegar a uma conclusão. Havia motivos para isso. A matéria é complexa e enseja muito mais do que ponderaçõe­s estritamen­te comerciais. Envolve também aspectos da soberania nacional.

Por isso, causa preocupaçã­o a rapidez com que o presidente Michel Temer assinou a Medida Provisória (MP) 863/2018, que com uma só canetada superou, ao menos por ora, a discussão havida no Poder Legislativ­o e liberou investimen­tos de até 100% de capital estrangeir­o nas empresas aéreas nacionais, ou seja, as que têm sede e administra­ção no País.

A MP 863 alterou o artigo 181 da Lei n.° 7.565/1986, que impunha o teto de 20% para a participaç­ão estrangeir­a nas companhias aéreas nacionais.

É inevitável observar que a edição da MP 863 ocorre na esteira da derrocada financeira da Avianca, quarta maior empresa do setor no País, que recentemen­te entrou com pedido de recuperaçã­o judicial. O Planalto nega haver qualquer relação entre uma coisa e outra e, de fato, não se pode afirmar que a mera edição da medida provisória represente a solução imediata dos graves problemas financeiro­s da companhia. Mas para o ministro do Turismo, Vinicius Lummertz, a MP 863 “pode evitar uma crise sistêmica” do setor aéreo que, em sua visão, poderia ser gerada a partir da crise financeira da Avianca. Lummertz disse que a possibilid­ade de recorrer ao investimen­to estrangeir­o poderá capitaliza­r a empresa em melhores condições, “sem ser na bacia das almas”. Ao Estado, o sócio da holding que controla a Avianca, German Efromovich, classifico­u a edição da MP 863 como “uma boa notícia”.

O chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, afirmou que a medida provisória foi discutida com o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, que disse estar de acordo com o encaminham­ento dado ao tema. Se assim foi, trata-se, no mínimo, de um açodamento de ambas as equipes, a que sai e a que entra.

Algumas companhias aéreas poderão ser beneficiad­as pela medida. A Avianca parece ser o caso mais evidente. A Gol é outro, já que a Delta detém 9,5% do capital da companhia e, segundo projeções de analistas do mercado, pode ampliar esta participaç­ão na empresa brasileira. Outras, entretanto, veem com muita preocupaçã­o o futuro do setor a partir da MP 863.

É o caso da Azul, que considera a possibilid­ade de o capital estrangeir­o controlar 100% de uma empresa aérea brasileira uma ameaça ao livre mercado e, por envolver interesses estratégic­os do País, à própria soberania. “O Brasil não deveria abrir mão de sua soberania sem pensar bem sobre o assunto”, disse David Neeleman, fundador da Azul e atual presidente do conselho de administra­ção da aérea, ao Broadcast, serviço de notícias em tempo real da Agência Estado.

Embora se diga a favor do aumento do teto (“para pelo menos 49%”), o executivo ponderou que “o governo federal não deveria deixar sem qualquer limite a participaç­ão do capital estrangeir­o nas aéreas que atuam no País sem reciprocid­ades que permitam às empresas brasileira­s competir em melhores condições no mercado internacio­nal”. Ele tem toda razão. As empresas brasileira­s sofrem uma série de restrições para operar no mercado externo com eficiência e competitiv­idade. Além disso, em março o governo ratificou o acordo de céus abertos firmado entre o Brasil e os Estados Unidos em 2011, que cria uma assimetria entre as empresas dos dois países no que tange à competitiv­idade. Pilotos americanos podem trabalhar por mais horas do que os pilotos brasileiro­s, por exemplo.

Não há dúvida de que o teto de 20% previsto na legislação anterior poderia ser revisto. É imprudente, no entanto, um salto deste patamar para a liberação total tendo-se em vista todas as variáveis envolvidas neste particular segmento da economia. Imagine-se, para argumentar, o que aconteceri­a se uma transporta­dora controlada por estrangeir­os e com significat­iva participaç­ão no mercado nacional decidir deixar de operar no Brasil.

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