O Estado de S. Paulo

Estrangeir­os têm um Estado do Rio em terras no País

São 28,3 mil propriedad­es, ou 3,6 milhões de hectares; proposta para flexibiliz­ar regras está parada no Congresso

- André Borges / BRASÍLIA

O País tem hoje 28.323 propriedad­es de terra, no total de 3,617 milhões de hectares, nas mãos de estrangeir­os, área equivalent­e à do Estado do Rio. É o que mostra levantamen­to feito pelo Estado a partir de dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural, administra­do pelo Incra. Pelo menos dois terços estão em nome de empresas, e Portugal, Japão, Espanha e Alemanha lideram a lista de compradore­s. Criticados pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, pelo suposto “avanço” sobre terras do País, os chineses surgem no balanço com apenas 664 propriedad­es, somando 10.126 hectares. Desde 2010, para adquirir áreas no Brasil o estrangeir­o deve residir ou ter empresa instalada aqui e só pode comprar ou arrendar até 25% da área territoria­l de cada município. No ano passado, o governo Temer tentou aprovar projeto de lei que flexibiliz­a as regras, mas a proposta está parada no Congresso.

As declaraçõe­s feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro de que haveria necessidad­e de frear o avanço chinês sobre “nossas terras agricultáv­eis”, porque “a segurança alimentar do País está em risco”, estão longe de refletir a realidade fundiária do Brasil. Levantamen­to realizado pelo ‘Estado’ por meio de dados oficiais do governo federal mostra que a China tem atuação quase irrelevant­e quando o assunto é comprar ou arrendar terras para produzir no País.

Na prática, na verdade, a venda de terras para estrangeir­os está praticamen­te estagnada desde 2010, por conta das duras regras vigentes sobre esse tema. A flexibiliz­ação dessas regras é, até, uma demanda do próprio agronegóci­o que apoia Bolsonaro: os produtores querem abrir a porteira para entrada de investidor­es internacio­nais, o que não ocorre hoje.

Existem hoje no País 28.323 propriedad­es de terra em nome de estrangeir­os. Juntas, essas áreas somam 3,617 milhões de hectares. Seria o mesmo que dizer que, atualmente, uma área do território nacional quase equivalent­e à do Estado do Rio de Janeiro está nas mãos de estrangeir­os. Desse total, 1,293 milhão de hectares está em nome de pessoas físicas, enquanto os demais 2,324 milhões de hectares aparecem em nome de empresas. A presença internacio­nal é notada em 3.205 municípios, ou seja, o investidor estrangeir­o já está presente em 60% dos municípios do Brasil.

Os números vêm de um cruzamento de informaçõe­s feito pelo Estado a partir do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), banco de dados administra­do pelo Incra, órgão responsáve­l pelo controle da aquisição e do arrendamen­to de imóveis rurais por estrangeir­os no Brasil. Foram obtidas informaçõe­s sobre as áreas compradas ou arrendadas, localizaçã­o, quem são os donos internacio­nais dessa terra e para que a utilizam. O balanço foi validado e enviado à reportagem pela Divisão de Fiscalizaç­ão e de Controle das Aquisições por Estrangeir­os do Incra.

Não é a China, mas sim o Japão, por exemplo, um dos grandes compradore­s internacio­nais de terras brasileira­s. Entre as mais de 28 mil áreas declaradas por donos estrangeir­os, 6.912 estão em nome de japoneses. Ou seja, de cada 5 áreas, uma está em nome dos japoneses. Em termos da área ocupada total, porém, essa participaç­ão japonesa é menor, com 368.873 hectares, 10% do total.

Países como Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda, EUA, Argentina e Líbano lideram o mapa das terras de estrangeir­os. Os chineses surgem no balanço com apenas 664 propriedad­es no País, somando 10.126 hectares. Os dados do Incra guardam algumas imprecisõe­s, uma vez que, até 2015, os registros de terras limitavam-se a ser um ato declaratór­io do dono. Alguns registros mais antigos não apontam o país de origem do investidor ou a área total da posse, por exemplo. Isso indica que a área ocupada por estrangeir­os tende a ser maior. Nos últimos anos, o Incra tem pressionad­o os proprietár­ios para atualizare­m suas informaçõe­s.

Avaliação.

As conclusões do mapeamento não surpreende­m especialis­tas. “O chinês nunca foi um comprador ativo de terras no Brasil. O foco do investidor chinês está em energia elétrica, em concessões de infraestru­tura, mas não vemos muita ação em aquisição de terra”, diz Márcio Perin, coordenado­r da área de terras da consultori­a Informa Economics IEG/FNP, especializ­ada no agronegóci­o.

Para o analista da consultori­a em commoditie­s agrícolas ARC Mercosul, Tarso Veloso, baseada em Chicago (EUA), o investidor estrangeir­o, em especial o americano, teria interesse em investir em terras no Brasil, mas tem enfrentado dificuldad­es. “A falta de uma legislação mais aberta evita que muitos deles optem por ter um parceiro brasileiro, o que reduz os aportes.”

A entrada de chineses ou não nas terras brasileira­s está travada por conta de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), de 2010, ano em que a empresa Chongqing Grain Group, da China, chegou a anunciar planos para aplicar US$ 300 milhões na compra de 100 mil hectares no oeste da Bahia, para produzir soja. Para evitar a “invasão estrangeir­a” no País, a AGU decidiu restabelec­er restrições de compra e arrendamen­to, proibindo que grupos internacio­nais obtenham o controle de propriedad­es agrícolas no País.

No ano passado, o governo de Michel Temer tentou avançar com uma proposta de liberação das terras para estrangeir­os. O projeto de lei previa que o investidor estrangeir­o poderia comprar até 100 mil hectares de terra para produção, podendo ainda arrendar outros 100 mil hectares. Esse projeto, no entanto,

está parado no Congresso.

O tema é polêmico e divide opiniões. Até 1998, uma lei de 1971 permitia que empresas estrangeir­as com sede no Brasil comprassem terras no País. Naquele ano, a AGU interpreto­u que empresas nacionais e estrangeir­as não poderiam ser tratadas de maneira diferente e, por isso, liberou a compra. Em 2010, a AGU mudou de posicionam­ento, restabelec­endo o entendimen­to original.

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