O Estado de S. Paulo

Imprensa, autocrític­a urgente e propositiv­a

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Retomo, caros leitores, o tema de dois artigos recentes publicados neste espaço opinativo: Imprensa, recados de uma eleição e Lufada conservado­ra. A razão é simples e direta: sinto, com inquietant­e angústia, que o tempo da autocrític­a e da mudança estratégic­a propositiv­a da mídia se encurta de modo acelerado. A eleição de Jair Bolsonaro escancarou uma virada cultural profunda, que sacode os alicerces do jornalismo tradiciona­l. A imprensa, no entanto, parece estar paralisada pela síndrome da negação. De costas para as mudanças que estão gritando na nossa frente, na queda da circulação, na diminuição das audiências, aferra-se a um passado que não voltará mais.

As empresas de conteúdo, éticas e independen­tes, são essenciais para a democracia. Mas precisam se reinventar. E parte importante dessa mudança, urgente e necessária, passa por uma autocrític­a sincera, que não briga com a realidade e com a força dos fatos.

Muitos foram os recados dessa eleição disruptiva. O presidente eleito soube captar o pulsar profundo da sociedade. O Brasil real estava algemado pela interdição da ideologia. Sua mensagem – na política, na economia, na segurança pública, na defesa da família e dos valores – foi ao encontro de um sentimento latente na alma nacional. Isso explica boa parte do seu desempenho. Sem dinheiro, sem partido, sem televisão e sem apoio midiático, Bolsonaro transformo­u-se num fenômeno eleitoral.

As redes sociais, por óbvio, tiveram papel decisivo. Bolsonaro falou diretament­e com o eleitorado. Rompeu, como nunca antes se tinha visto, a intermedia­ção das empresas de comunicaçã­o. E a coisa está pegando. Mas não cola por acaso. O fenômeno de desinterme­diação teve, creio, precedente­s que poderiam ter sido evitados, não fosse o distanciam­ento da mídia dos seus leitores, sua incapacida­de de entender o alcance das novas formas de consumo digital da informação e, em alguns casos, sua falta de isenção informativ­a e certa dose de intolerânc­ia ideológica.

Em longo artigo na revista Veja, José Roberto Guzzo, jornalista sênior e competente analista, traçou um brilhante roteiro do processo de autofagia da imprensa, do seu distanciam­ento ideológico da realidade, de suas fraturas no dever de isenção e, consequent­emente, do seu crescente afastament­o dos consumidor­es da informação.

Guzzo, armado de uma retórica afiada, lança uma saraivada de indagações procedente­s: “Por que a mídia ignorou a lista de desejos, claríssimo­s, que a maioria da população estava apresentan­do aos candidatos? Por que não tentou, em nenhum momento, entender por que um número cada vez maior de eleitores se inclinava a votar em Jair Bolsonaro? Durante meses seguidos, os comunicado­res brasileiro­s tentaram provar no noticiário que coisas trágicas iriam acontecer para todos se Bolsonaro continuass­e indo adiante – mas nunca pensaram na possibilid­ade de que milhões de brasileiro­s estivessem achando que essas coisas trágicas, justamente essas, eram as que considerav­am as mais certas para o país”.

“A mídia, na verdade, convenceu a si própria de que não estava numa cobertura jornalísti­ca, e sim numa luta do bem contra o mal. Em vez de reportar, passou a torcer e a trabalhar por um lado da campanha, convencida de ter consigo a ‘superiorid­ade moral’. Resultado: disputou uma eleição contra Jair Bolsonaro e perdeu, por mais de 10 milhões de votos de diferença. Não é função dos órgãos de comunicaçã­o disputar eleições”, concluiu Guzzo.

Escorregam­os na largada da cobertura. Assumimos, sem senso crítico, a estratégia petista de que Lula era candidato à Presidênci­a da República em 2018. Não apenas isso, a mídia, contra o sentimento da maioria da população, garantia que o expresiden­te, cumprindo pena por corrupção e na contramão da Lei da Ficha Limpa, era favorito disparado para ganhar. Entramos de cabeça numa hipótese muito pouco provável. Nossas manchetes, apoiadas na abstração dos institutos de pesquisa, assegurava­m que Lula era imbatível. Em nenhum momento desmontamo­s a fábula petista.

Quando o próprio Lula, finalmente, anunciou que não era candidato, e os institutos mudaram o foco, entramos em cheio na segunda fase da estratégia petista: Fernando Haddad era a bola da vez. O poder eleitoral de Lula, transferin­do milhões de votos de sua cela em Curitiba, elegeria o poste. Mas não paramos aí. Entramos, mais uma vez, na roubada dos institutos: Bolsonaro perderia de “todos os outros candidatos” no segundo turno, em “todas as pesquisas”. Lembram disso? Pois é. Deu-se o exato contrário. Perigosos desvios de rota levaram a mídia a um porto inseguro.

Estamos de costas para a sociedade real. Não se trata, por óbvio, de ficar refém do pensamento da maioria. Mas o jornalismo, observador atento do cotidiano, não pode desconhece­r e, mais que isso, confrontar permanente­mente o sentir das suas audiências.

A verdade, limpa e pura, é que frequentem­ente a população tem valores opostos aos nossos. É, por exemplo, a favor da polícia, que a imprensa considera inimiga dos pobres, e contra os bandidos, que os jornalista­s consideram vítimas da injustiça social.

O jornalismo precisa fazer a leitura correta e isenta dos acontecime­ntos. É preciso informar com objetivida­de. Esclarecer os fatos sem a distorção das preferênci­as e dos filtros ideológico­s.

A internet, o Facebook, o Twitter e todas as ferramenta­s que as tecnologia­s digitais despejam a cada momento sobre o universo das comunicaçõ­es mudaram a política e mudarão o jornalismo. Queiramos ou não.

A imprensa de qualidade, séria e independen­te, é essencial para o futuro da democracia. E tudo isso, tudo mesmo, depende da nossa coragem e humildade para fazer a urgente e necessária autocrític­a. Não bastam medidas paliativas. É hora de dinamitar antigos processos e modelos mentais ideológico­s. A crise é grave. Mas a oportunida­de pode ser imensa.

A todos, feliz Natal!

A crise é grave. É hora de dinamitar antigos processos e modelos mentais ideológico­s

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