O Estado de S. Paulo

Pacto de mediocrida­de

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Ocaso envolvendo um ex-assessor do deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro, cuja conta bancária apresentou movimentaç­ão “atípica” de R$ 1,2 milhão, está muito longe de ser um escândalo nas proporções às quais os brasileiro­s infelizmen­te se acostumara­m nos últimos anos. A importânci­a desse episódio está justamente no fato de que joga luz em uma prática comezinha no Legislativ­o: servidores que devolvem parte de seus salários para os parlamenta­res que os empregaram.

Esse mecanismo não é novidade para ninguém, mas o fato de que veio à tona um caso desses envolvendo um filho do presidente eleito Jair Bolsonaro ajuda a dar evidência a uma conduta imoral que até aqui vinha sendo tratada como banal.

A degradação da atividade legislativ­a resulta não apenas dos escabrosos casos de corrupção envolvendo milhões de reais, mas também, e talvez principalm­ente, da institucio­nalização de rotinas que se prestam a misturar o público e o privado nas Câmaras e Assembleia­s País afora, como é o caso do repasse de salários de funcionári­os públicos para parlamenta­res. Somente um amplo pacto de safada mediocrida­de é capaz de garantir o funcioname­nto permanente desse sistema de compadrio.

A deputada estadual eleita Janaína Paschoal (PSL) explicou recentemen­te, nas redes sociais, como funciona o esquema e como ele é mantido. Ela participou de um curso para deputados eleitos, na Assembleia de São Paulo, em que um funcionári­o comentou quais são as situações em que a Corregedor­ia da Casa atua. Uma dessas situações é justamente a devolução de salários por parte de assessores – cada deputado pode contratar até 32 servidores. “Os salários são muito bons, quando se compara com o mercado”, salientou Janaína Paschoal. Para ela, o valor seria adequado para “procurar bons quadros” dispostos “a trabalhar muito em prol do bem público”. No entanto, diz a futura deputada, “algumas vezes o parlamenta­r prefere contratar alguém com capacitaçã­o incompatív­el com o salário”.

A intenção é que esse funcionári­o “vai ficar muito satisfeito” por ganhar muito acima de sua capacidade e, assim, não verá nenhum problema em “devolver uma boa parte ao parlamenta­r”, explica a deputada eleita. Como a verba para a contrataçã­o fica à disposição do deputado, diz ela, “algumas pessoas acham natural a devolução”, como se o dinheiro pertencess­e ao parlamenta­r.

Janaína Paschoal perguntou por que os servidores não denunciam a prática. O funcionári­o da Corregedor­ia lhe respondeu que quem denuncia é “enquadrado” por irregulari­dade, exonerado e obrigado a devolver todos os salários que recebeu. Logo, concluiu a deputada eleita, não há nenhum incentivo para que as denúncias sejam feitas e todos fingem que não há irregulari­dade.

“Esse tipo de prática é bem mais deletéria do que parece”, afirmou Janaína Paschoal, “pois, com o tempo, o parlamenta­r para de procurar pessoas competente­s e passa a buscar pessoas rasas e inseguras, que se submetem.” Mas pode ser pior: “Não raras vezes, o parlamenta­r contrata pessoas que sequer comparecem para trabalhar, pois o fim é apenas obter o salário de volta”. A esse propósito, a Polícia Federal informou ter encontrado indícios de um grande esquema de contrataçã­o de servidores fantasmas que repassaria­m salários para deputados da Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro. Não deve ser o único.

O aspecto mais relevante dessa história, como observou Janaína, é que se tornou natural o comportame­nto promíscuo entre parlamenta­res e seus assessores, como se entre eles houvesse uma relação familiar – não é raro encontrar assessores que são amigos dos parlamenta­res há décadas, como o pivô do episódio envolvendo a família Bolsonaro.

O resultado é que o trabalho de assessoria parlamenta­r, fundamenta­l para auxiliar os políticos a formular projetos, é prejudicad­o pelo despreparo de servidores que só estão ali para repassar salários aos seus benfeitore­s – tudo sob a proteção cúmplice dos que fingem que isso não é nada demais.

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