O Estado de S. Paulo

A estabilida­de do endividame­nto público

- CLAUDIO ADILSON GONÇALEZ

Peço desculpas aos leitores habituais desta coluna por voltar, pela terceira vez, ao mesmo tema. Refiro-me à interpreta­ção equivocada que se faz sobre a conta de juros da dívida pública e seus impactos no rombo fiscal. Ocorre que meus colegas economista­s continuam confundind­o valores nominais com valores reais e, por causa disso, propondo medidas equivocada­s para sustar o cresciment­o descontrol­ado da relação dívida/PIB.

Nos últimos 12 meses encerrados em outubro, o Banco Central (BC) apurou, pelo regime de competênci­a, o valor bruto de R$ 380 bilhões como juros sobre a dívida do setor público consolidad­o (União, Estados, municípios e estatais). Isso equivale a uma taxa de 7,0% sobre a dívida bruta (DP) antes da capitaliza­ção dos juros e a 5,5% do PIB. São números que impression­am os analistas.

Ocorre que, no mesmo período, a inflação medida pelo IPCA foi de 4,6%. Essa parcela, relativa à inflação, é capitaliza­da na DP e correspond­e à mera atualizaçã­o monetária do seu valor. O mesmo porcentual (adotando a hipótese simplifica­dora de que a variação do IPCA é igual à do deflator implícito do PIB) também atualiza o PIB, não tendo qualquer efeito sobre o nível de endividame­nto público. Subtraída a inflação, observa-se que o juro real sobre a DP foi de 2,4% ou 1,9% do PIB. Repetindo: a conta de juros que realmente importa foi de 1,9% do PIB, e não de 5,5% do PIB. Para fins de comparação, basta lembrar que, nos últimos 12 meses, o governo federal gastou aproximada­mente 11% do PIB com pagamento de benefícios previdenci­ários, aqui incluídos os inativos da União.

Olhemos esta questão com mais detalhes. A relação DP/PIB, no conceito do FMI (que inclui, além dos títulos em mercado, aqueles que se encontram na carteira do BC), alcançou em outubro deste ano 84,6%, um patamar exagerado para um país emergente como o Brasil.

Uma fórmula matemática simples, de amplo conhecimen­to entre os economista­s, permite entender melhor a relação entre as variáveis que determinam a evolução do endividame­nto. Podemos explicitá-la da seguinte forma: SP = B x (r – g)/(1+g), onde “SP” é o superávit primário (que não inclui o pagamento de juros) necessário para estabiliza­r o endividame­nto como proporção do PIB; “B” é a relação dívida bruta/PIB atual; “r” é a taxa real de juros; e “g” é a taxa de cresciment­o real do PIB.

Para ilustrar, suponhamos que a taxa real de juros seja de 4% ao ano e que o cresciment­o do PIB se estabilize em 2% ao ano. Substituin­do esses valores na fórmula, verificamo­s que seria preciso que o setor público gerasse superávit primário de 1,7% ao ano para manter a DP nos atuais 84,6% do PIB. Se o cresciment­o do PIB subisse para 3% ao ano, o superávit primário requerido cairia para menos da metade (0,8% do PIB). Notem que a dinâmica do endividame­nto depende de variáveis reais, não nominais. A parcela dos juros correspond­ente à inflação não tem a menor influência sobre isso.

Imaginemos, agora, que o governo consiga, com a venda de ativos, abater R$ 500 bilhões da DP, o que a reduziria

Sem tornar o déficit primário em superávit, tentar conter os juros nominais não resolve nosso problema fiscal

para 77,1% do PIB. Mantidos os níveis de juro real e cresciment­o do PIB, nossa fórmula simples nos mostra que o superávit primário necessário para estabilizá-la neste novo patamar é quase o mesmo do anterior, ou seja, 1,5% do PIB. Se por acaso o governo falhasse parcialmen­te no ajuste das contas públicas e passasse a registrar equilíbrio primário (déficit zero), ao invés do superávit requerido, bastariam cinco anos para o endividame­nto voltar ao patamar anterior de 84,6% do PIB.

Moral da história: sem transforma­r o atual déficit primário em superávit, principalm­ente por meio de uma profunda reforma da Previdênci­a, tentar conter os juros nominais, mesmo que seja mediante resgate de parte da dívida, não resolve nosso problema fiscal.

ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORE­S, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁ­RIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA

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