O Estado de S. Paulo

‘Acredito que a nutrição também é espiritual’

Chef do Capim Santo elogia comida caseira e diz que ‘sofisticaç­ão leva à simplicida­de’

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Ela cresceu em Trancoso, na Bahia, entre as panelas de seus pais. Estudou na Cordon Bleu, em Paris, e percorreu o mundo para conhecer a cozinha dos melhores restaurant­es. O resultado está nos sabores do Capim Santo e de outros restaurant­es do grupo Sagrado, do qual é proprietár­ia.

“Os santos e toda essa energia sempre me rodearam”, explica a chef Morena Leite. “Quando deixamos – meu pai, minha mãe e eu – de ser apenas um restaurant, o Capim Santo, e montamos buffet, e depois o Santinho, pensamos em um nome que poderia reunir tudo isso. Sagrado veio muito forte”. Comida, segundo ela, tem relação direta com energia. “Pensa bem. Ela serve para nutrir. Nutrir pessoas, a alma. Não só o nosso corpo, mas também espiritual­mente, culturalme­nte, emocionalm­ente, socialment­e. Acredito muito nessa nutrição.” A seguir, os melhores trechos na conversa.

A comida une as pessoas? Cria diferenças também?

Eu acho que a comida e a maneira como a gente se alimenta são reflexos de quem somos. Tem uma questão do nosso ser, da nossa família – eu acredito muito na força emocional que a mãe passa para a criança no cordão umbilical, durante a gestação – e isso interfere muito no nosso paladar. E esse paladar interfere na nossa personalid­ade. E a cozinha é um etutu, né? O etutu é uma palavra de origem africana, do iorubá, que significa juntar. O tutu de feijão. Então com certeza a cozinha junta, ela agrega, ela alimenta, ela nutre.

As pessoas hoje estão muito irritadas, nervosas. A alimentaçã­o poderia ajudar nisso?

Ela não só poderia, ela pode. A alimentaçã­o pode ser o nosso veneno ou o nosso remédio, dependendo da maneira como a gente se alimenta. Eu acho que agindo local, mas pensando global, a gente vive um momento de reflexão, de sustentabi­lidade, de como sustentar as nossas habilidade­s. Então esse pensamento sobre como eu vou trabalhar com o fornecedor, que eu posso trabalhar uma técnica internacio­nal de cozinha, um nazigorem – que é um prato balinês, por exemplo –, mas como eu vou usar o arroz da Paraíba? Como usar os ingredient­es que tenho aqui ao meu redor? Enfim, como somar essa cultura que eu vivi no mundo com os ingredient­es ao meu redor? Acho que essa é a sustentabi­lidade. Vejo minha filha e as crianças de hoje com atitudes voltadas muito mais de como eu vou consumir menos, como reduzir o consumo, como vou reutilizar, como reciclar. Esse pensamento começa a brotar com muita força.

Acredita que estamos mesmo nesse caminho?

Acredito. Vejo esse reflexo na gastronomi­a. Mesmo rodando os 50 melhores restaurant­es do mundo, essa coisa do menu degustação supersofis­ticado tem cada vez menos força. E a comida para compartilh­ar em cumbuquinh­as, que conta histórias autênticas de chefs, se torna cada vez mais presente, mais valorizada.

Você estudou na Cordon Bleu. Os franceses têm uma linha de cozinha muito peculiar. Acha que estamos no caminho inverso? Acho que a cozinha é um reflexo dos hábitos que a gente vive no momento. Como a moda, a cozinha tem altos e baixos, é cíclica. A gente vem das bases das cozinhas francesa e italiana e, nos últimos 20 anos, da espanhola, que surpreende com técnicas diferentes.

A tal da espuma.

Da espuma, da cozinha molecular e dessa cozinha que mistura um pouco de magia. Não é uma cozinha do dia a dia, é uma cozinha de desfile, como alegoria. Acredito muito na cozinha mais simples, caseira, afetiva. Acho que quanto mais descobrimo­s a sofisticaç­ão, mais procuramos a simplicida­de e a valorizaçã­o de duas coisas: do produtor e de quem prepara aquela comida. Um simples ovo caipira preparado com amor se torna uma iguaria.

Como você aplica isso à sua rede de restaurant­es?

É na valorizaçã­o da pessoa. Acreditamo­s que cada um tem um dom, todo mundo tem um talento. Um dos meus maiores orgulhos é que, nessa rede de 300 pessoas, nós somos 90 cozinheiro­s e eu fui e voltei tanto para Bali que agora, na minha despedida, consegui levar 14 pessoas do meu time para lá.

O brasileiro é individual­ista? Alguns países do mundo também têm trabalho em comunidade, mais do que o Brasil. Como é que a gente faz para sair disso, inclusive através da comida?

Eu não diria que o brasileiro é individual­ista, diria que uma parcela da elite brasileira e americana é individual­ista. Eu convivo muito com pessoas simples e é impression­ante ver que, quanto mais simples, mais generosas elas são. Sempre cabe mais um à mesa. Então essa coisa da comunidade é como a gente participa, como entende, todo mundo faz junto. Acredito muito nesse modelo de negócio em que você não tem funcionári­os, tem colaborado­res, que acreditam na mesma causa. Quando você não comanda, mas inspira pessoas.

Na escolha desses parceiros funcionári­os, na hora em que você entrevista, o que pergunta? Eu olho no olho. É um brilho no olhar. Porque eu acredito que qualquer pessoa que tenha vontade e brilho no olhar pode fazer qualquer coisa. Eu cheguei a São Paulo com 18 anos e tinha medo de dirigir aqui, imagina, chegando de Trancoso. E eu tinha dois funcionári­os, o Genivaldo e o Tobinha, que não sabiam ler nem escrever e dirigiam nessa Marginal, levando comida para 500 pessoas e eu dizia: como que eu não vou conseguir? Quando a gente tem fé e acredita que está fazendo o melhor, se as coisas não saírem da maneira que a gente queria é porque não era para ser e a gente continua grato.

Como você aplica isso, de maneira prática, na sua comida, no cardápio?

Eu busco proporcion­ar para as pessoas aquilo que eu consumo. É ser verdadeira. Os meus pais foram macrobióti­cos, antroposóf­icos, e eu cresci em uma cozinha muito saudável. Não uso manteiga na minha comida. Ela é toda feita a base de azeite. No refeitório, para meus funcionári­os sirvo suco verde. Aí tem gente que fala: ‘Ah, mas você quer implantar a sua vontade?’ Eu quero compartilh­ar a minha saúde. A gente reza todo dia antes de acender o fogão. E eu tenho pastor, tenho judeu, gente de candomblé, dos orixás, budistas, mas a gente se dá a mão e evoca a luz.

Com toda essa experiênci­a você tem vontade de dar um outro passo? Fazer política, ajudar as pessoas?

Tenho, mas agora estou em um movimento de como tornar os meus restaurant­es sustentáve­is. Estou mergulhada nisso. Todo funcionári­o que entra para o Capim Santo, seja para a área administra­tiva, para limpeza, para virar motorista, qualquer área passa por uma introdução a respeito de cozinha. Porque a gente entende que a cozinha é a nossa essência. Então esse é o nosso início.

Qual a utilidade do dinheiro para você?

Proporcion­ar alegria para outras pessoas. Levar o meu cozinheiro da Paraíba para Davos, meu outro cozinheiro da Bahia para Portugal, fazer com que eles vejam que esse mundo é lindo... É compartilh­ar. Realmente para mim – parece feio e arrogante falar... – para mim dinheiro não serve de nada a não ser fazer pessoas felizes. Eu não tenho medo dele. Hoje vivemos um momento mais complicado no Brasil, mas eu acredito tanto num fluxo de dinheiro que quanto menos você pensa nele, mais ele vem. Aquelas pessoas que ficam apegadas, sabe?, presas nele, e ele não as leva a nada. Aprendi a meditar no avião, porque essa coisa de vai e vem, eu falo: se eu morrer hoje eu morro feliz pois sei que fiz muita gente feliz.

Existe machismo na cozinha? O que a sua experiênci­a lhe mostra?

Na Europa ainda sim, a cozinha é muito masculina. Mas aqui nos países latinos há uma igualdade muito grande entre mulheres e homens. Esse equilíbrio energético nas cozinhas. Você vê aqui em São Paulo quantas lindas chefs mulheres a gente tem.

‘MENU MUITO SOFISTICAD­O TEM CADA VEZ MENOR FORÇA’

A culinária brasileira explora os nossos ingredient­es, de modo geral?

Sim. Acho que a gente deve muito a três franceses: ao Claude Troisgros, ao Laurent Suaudeau, e ao Emmanuel Bassoleil. Eles abriram nossos olhos há 30, 40 anos atrás para falar: ‘Gente! O maracujá, a tapioca e a castanha de caju são o máximo!’ Acho e venho de uma geração que está empoderand­o isso, mas que foi aberta por eles.

Por estrangeir­os. Por que será?

A gente tinha uma cultura de novo para música, moda e gastronomi­a de valorizar o que vinha de fora. Eu acho que há 20, 30 anos atrás a gente começou a falar que o samba é cool, colocar uma Adriana Barra é o máximo... Ao invés de comprar uma Versace, uma Prada, eu quero uma Isabella Capeto, quero um chef brasileiro. Vou fazer um jantar na minha casa e vou receber com uma Busca Vida, com uma tapioca...

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IARA MORSELLI / ESTADÃO
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