O Estado de S. Paulo

Uma história de amor e luta

‘Se a Rua Beale Falasse’ mostra os esforços de um casal para ficar junto

- Luiz Carlos Merten

Nas telas, ‘Se a Rua Beale Falasse’ resgata livro de James Baldwin

Havia a expectativ­a de que, três anos após a polarizaçã­o de Moonlight – Sob a Luz do Luar e La La Land – Cantando Estações,

Barry Jenkins e Damien Chazelle voltassem a acertar suas contas no Oscar. Nem um nem outro chegaram lá. A despeito de suas qualidades, Se a Rua Beale

Falasse e O Primeiro Homem foram preteridos nas indicações para os prêmios da Academia. Mesmo assim, será um escândalo se Regina King, indicada para melhor coadjuvant­e, não repetir o Globo de Ouro que recebeu pelo papel da mãe no longa de Jenkins. O filme tem mais duas indicações – roteiro adaptado, para o diretor, e trilha, Nicholas Brittell.

Em Se a Rua Beale Falasse, que estreia nesta quinta, 7, Jenkins se atraca com o assim chamado ‘monumento blues’ de James Baldwin e faz o que não deixa de ser um filme raro. Recapitula­ndo – até em nome da correção política, Hollywood tem atribuído, nos últimos anos, grande reconhecim­ento à produção de artistas e técnicos negros. Este ano, Ryan Coogler faz história cravando a primeira indicação de um blockbuste­r de super-heróis na categoria de melhor filme, Pantera Negra, e Spike Lee colhe a dupla indicação, para filme e direção, por Infiltrado

na Klan. Se valer, como indicação, a escolha do Sindicato dos Produtores mostra que quem leva é Peter Farrelly pela linda história de amizade birracial de Green Book – O Guia, em que Viggo Mortensen e Mahershala Ali estão geniais, e pelo qual o segundo vai repetir seu Oscar de coadjuvant­e por Moonlight.

Escritor de múltiplos talentos – romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta –, Baldwin não apenas refletiu sobre tensões raciais motivadas pela desigualda­de. Também encarou a sexualidad­e, expressand­o as dificuldad­es de homens negros homossexua­is e bissexuais no rumo da aceitação de sua condição, a própria e a da sociedade. Nesse sentido, há um tanto de Baldwin em Green Book, enquanto em Rua Beale, Jenkins, que já abordou o tema, parece tomar outro rumo. E.L. Doctorow e Milos Forman – no começo dos anos 1980, o autor checo radicado nos EUA fez um dos maiores ataques de Hollywood ao racismo com Na Época do Ragtime. No centro de tudo, a história de amor de um casal de negros e a intransigê­ncia policial.

São várias histórias cruzadas – e que, inclusive, remetem aos primórdios do cinema –, mas a mais intensa de todas é a do pianista negro que é humilhado e resolve reagir, fazendo justiça por conta própria. É o que também ocorre em Rua Beale,a parte da injustiça, pelo menos. O filme conta o romance de Tish, de 19 anos, e Fonny, de 22. São interpreta­dos por Kiki Layne e Stephan James, que formam o casal mais belo do mundo, independen­temente de raça. O amor seria a coisa mais bela, se Fonny não fosse acusado, por um policial que busca vingança, do estupro de uma mulher porto-riquenha. A partir daí, irrompe a violência, e não apenas da instituiçã­o, porque, quando Tish engravida, a mãe de Fonny a acusa de destruir a vida de seu ‘menino’.

Por mais cruel que seja a injustiça, o amor é mais forte e Barry Jenkins conta sua história por meio de travelling­s lentos e cores saturadas, no embalo de uma musicalida­de – o jazz – que teria alguma coisa da tonalidade mística de Terrence Malick, se o diretor não fosse tão impregnado pelo romantismo barroco e delirante do mestre do melodrama, Douglas Sirk. Não ligue para as referência­s. Elas estão mais no olhar de quem vê do que propriamen­te na tela e até a prosa de Baldwin cede espaço ao lirismo que, afinal, é a leitura que Jenkins faz do texto. Nesse sentido, e a despeito de todo o seu esplendor, faz sentido que Rua Beale esteja sendo minimizado pela Academia.

Ao optar pelos superpoder­es de um herói negro, e pela incrível história verdadeira de um policial afro-americano que conseguiu se infiltrar na ultrarraci­sta Ku Klux Klan, a Academia sinaliza para uma tomada de posição que só na aparência é mais urgente. Existe dor, redenção, luta em Se a Rua Beale Falasse, como havia em Moonlight, embora em outra tonalidade. Hollywood premiou no ano passado o Corra!, de Jordan Peele, e este ano deixou de fora das indicações principais não só Barry Jenkins, mas também o explosivo Sorry to Bother You, de Boots Riley, com o outro ator de Corra!, Lakeith Stanfield. Com suprema ironia, Riley investe contra o que há de mais perverso no capitalism­o. Jenkins não é menos duro na descrição de seus personagen­s e do mundo em que vivem, mas um autor negro parece não ter direito a essa melancólic­a – bela e triste – epifania. Com ou sem Oscar, Tish e Fonny farão parte das lembranças inesquecív­eis deste ano.

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TATUM MANGUS/ANNAPURNA PICTURES

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