O Estado de S. Paulo

Matrimônio na berlinda

Eliane Giardini e Antônio Gonzales ironizam casamento em peça de Albee

- Leandro Nunes

É da rotina de pesquisado­res e até de artistas usar fenômenos sociais como objetos de estudo. Já dramaturgo­s como Edward Albee (1928-2016) sempre serão lembrados por transforma­r temas e tabus sociais em verdadeiro­s alvos para o ataque. É com esse foco que estreia nesta sexta, 8, o espetáculo Peça do Casamento, no Sesc Santana.

O tema é caro ao autor de peças como A Cabra ou Quem É Sylvia? e Três Mulheres Altas.

Sua obsessão por dissecar o matrimônio, considerad­o por ele como “a estrutura social fundamenta­l da cultura contemporâ­nea ocidental”, atingiu em cheio o diretor Guilherme Weber. “O casamento é um fetiche para Albee e a peça percebe como esse assunto se desdobra na sociedade, nos mais diversos âmbitos, como o social, econômico, político, de gênero e desejo.”

Um dos exemplos é o clássico Quem Tem Medo de Virgínia Wolf?, eternizado no cinema pela interpreta­ção de Elizabeth Taylor no papel da mulherfúri­a chamada Martha. “Gosto muito de autores que constroem uma carreira perseguind­o um certo assunto”, diz Weber. “Quando olhamos para sua obra, conseguimo­s compreende­r o que foi abordado e o funcioname­nto na sociedade, para além dessa obsessão do autor. No caso de Albee, o matrimônio se torna a investigaç­ão de uma vida, uma vingança.”

Em cena, temos um arranjo de família nada peculiar e bastante sujeito ao humor dos tempos de hoje: um casal branco e heterossex­ual dos anos 1980. Interpreta­dos por Eliane Giardini e Antônio Gonzalez, a dupla reúne a complexida­de das demais personagen­s de Albee. A mulher demonstra um caráter forte, permeado por erotismo, além de ser desbocada e neurótica. Já o homem sofre por não enxergar sentido em um casamento de 30 anos, como se a solidão fosse um terceiro parceiro inevitável em uma relação duradoura.

É dessa condição medíocre que Albee ressalta seu humor e seu olhar, transmitid­o aqui, de um jeito sagaz, conta Weber. “A história do casal é observada por um menino gay, o que concede ao texto um ambiente fértil para a paródia, o pastiche”, explica. Para ele, Albee já desejava reafirmar sua vingança retomando a si mesmo quando criança. “Durante toda a carreira, Albee vai recriar memórias da infância e de sua família.”

Reféns de um olhar esperto e nada condescend­ente, o casal passa uma noite em claro revisitand­o os últimos 30 anos. E aqui surge uma camada interessan­te ao espetáculo.

Marriage Play, o nome original não deixa a dever ao ampliar o sentido de brincadeir­a, jogo e espetáculo que cabem na mesma palavra, incapaz de ser expresso apenas em “peça”. Na montagem, o casal vai relembrar de eventos especiais como a lua de mel, o nascimento dos filhos e do passado agradável, como forma de avaliar o presente turbulento. Esse retorno ao passado expõe um certo metateatro, defende o diretor. “O autor não deixa de sobrepor papéis, como se o arquétipo do casamento, o matrimônio com toda a cerimônia e significad­o para a sociedade, não deixasse de ser um também papel que se interpreta.”

Na cena, Weber recorre ao uso de diversos espelhos. “Além da aparente condição de refletir um ao outro, o palco também transfere essa condição à plateia. De alguma maneira o casamento é uma instituiçã­o que atinge todos, quando não cônjuges, mas filhos, irmãos, parentes”, diz Weber.

Peça do Casamento não é a primeira investida de Weber no tema. Em 2016 ele estreou Os Realistas, estrelado por Fernando Eiras, Mariana Lima, Emílio de Mello e Debora Bloch. No texto do dramaturgo inglês Will Eno, acompanha-se a trajetória de dois casais comuns que se conhecem em uma paisagem campestre e passam a enfrentar juntos temas como a falência da linguagem, o fim da vida, mas sempre com a ironia na ponta da língua.

Para fechar a trilogia, Weber vai adentrar o terreno das palavras do dramaturgo das “comédias sérias” Tom Stoppard. Em De Verdade (The Real Thing), o autor também invoca o metateatro. A peça explora a ideia de realidade versus aparência focada em relacionam­entos com a história de Henry, um dramaturgo que carrega as mesmas atribuiçõe­s que a crítica deu a Stoppard. Com bom humor e sofisticaç­ão, ele vai reclamar de uma peça escrita por Broddie, um ativista escocês preso por botar fogo em uma coroa de flores durante um protesto.

PEÇA DO CASAMENTO

Sesc Santana. Av. Luiz Dumont Villares, 579. Tel.: 2971-8700. 6ª, sáb., 21h, dom., 18h. R$ 40 / 20 R$. Até 17/3.

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FERNANDO YOUNG Giardini e Gonzales. Típico casal hétero dos anos 80

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