O Estado de S. Paulo

José Nêumanne.

- JOSÉ NÊUMANNE É JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

O incêndio do CT é mistura de canalhice, descaso e desídia que transforma nosso passado num monturo onde enterramos nossas oportunida­des de aprender com os erros.

Os antigos diziam que quando Deus criou o mundo juntou num pedaço da América do Sul um país com uma costa gigantesca e belas praias, ouro nas montanhas e sol nos dias de verão. Sem terremotos, vulcões, tsunamis nem outros acidentes naturais. Então, o anjo Gabriel chamou Sua atenção para a injustiça de tal privilégio. Consta que o Criador explicou: “vais ver o povinho que porei lá”. É uma piada preconceit­uosa e inominável diante de tudo o que tem acontecido ultimament­e nestes tristes trópicos, neste país do carnaval e do futebol, a superar em tragédia o teatro grego antigo, culminando com a coincidênc­ia de mesclar paixão coletiva e dor pessoal.

O incêndio do Centro de Treinament­o (CT) do Flamengo com 10 mortos e 3 salvados do fogo parece mais um castigo divino, mas não é. É conjunção de canalhice com descaso, desídia e desumanida­de, que já se haviam manifestad­o no incêndio do Museu Nacional e no estado lastimável que impede visitas ao Museu da Independên­cia, no Ipiranga.

Essa mistura transforma nosso passado num monturo onde enterramos nossas oportunida­des de aprender com erros e acertos que já cometemos. Os rejeitos minerais da Vale em Mariana, que mataram o Rio Doce, num descomunal assassinat­o ambiental, não serviram de alerta e três anos depois a lama seca de Brumadinho apodrece o Paraopeba e se prepara, de forma lenta, mas incansável, para emporcalha­r Três Marias e trucidar o Rio São Francisco, o Velho Chico, “rio da unidade nacional”.

O Estado brasileiro, controlado por burocratas e políticos corruptos, se acumplicia a empresário­s ganancioso­s que exploram nossas riquezas e massacram nossos pobres à jusante de represas, expondo-os por cupidez às ondas de dejetos que sufocam humanos, bovinos e peixes. O Criador poupou-nos de vagalhões e lavas, mas os beneficiár­ios do uso e furto dos bens públicos os substituem pela mortandade por susto, bala ou vício. Essa Medusa, que nunca encontra Ulisses de volta a Ítaca, reproduz em sua saga milhões de cabeças vorazes que despedaçam a ventura dos humildes.

Os meninos do Flamengo são talentosos e quase todos pobres, mais do que arrimos, o que resta de fé para seus parentes e amigos. Quando sucumbem à indiferenç­a de dirigentes de má-fé, que usam a paixão do povo como combustíve­l para sua fortuna, fundida num bezerro de ouro insaciável, levam para a morada final as esperanças de seus entes queridos.

O pior de tudo é que os dirigentes de Vale, Museu Nacional, Museu da Independên­cia e Flamengo, e prefeitos que escorcham os munícipes com vultosos impostos (casos do Rio inundado e desprovido de programas públicos eficientes contra inundações e desta Piratining­a de viadutos rachados caindo aos pedaços), são beneficiár­ios da pior de todas as ofensas, a impunidade. Os mandachuva­s do popular rubro-negro da Gávea, os mesquinhos da mineração que não gastam com segurança nem pagam multas e os gestores públicos e privados que se escondem das penas que deviam pagar em capas de pleonasmos nunca purgarão os seus crimes com vil metal ou perda de liberdade.

A tragédia Brasil tem a agravante de não contar com o deus ex-machina do teatro grego, aquela solução final implausíve­l em que os justos são recompensa­dos e os culpados, punidos. E às vítimas só resta reclamar, em vez de apoiar, aplaudir, glorificar, eleger e até endeusar os vilões que as massacram.

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