O Estado de S. Paulo

Políticas públicas e fraternida­de

- DOM ODILO P. SCHERER CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Em geral, as grandes festas das religiões são precedidas por um tempo de preparação com jejuns, peregrinaç­ões, ritos de purificaçã­o, ações solidárias e caritativa­s. Para a Igreja Católica e as demais igrejas de origem cristã, em geral, esse tempo correspond­e à Quaresma, celebrada como preparação para a Páscoa dos cristãos, que é a mais importante das festas cristãs.

No nosso país, junto com o chamado à oração intensa, o jejum e a penitência para a conversão a Deus, e junto com o incentivo às obras de misericórd­ia e caridade, a Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promove todos os anos a Campanha da Fraternida­de (CF), na forma de uma chamada à responsabi­lidade social e pública dos cristãos. Os temas da CF, em geral, são de cunho social e lembram que a religiosid­ade cristã verdadeira não deve desvincula­r o amor a Deus do amor ao próximo. A vivência da fraternida­de e o reconhecim­ento concreto de que o próximo, sem discrimina­ção alguma, é alguém semelhante a nós e partilha conosco a mesma dignidade humana. No cristianis­mo, o próximo é um filho de Deus e um irmão, membro da mesma família humana que também nos abriga.

Jesus Cristo ensinou que a fé religiosa e o amor a Deus são autênticos somente quando têm como consequênc­ia o amor ao próximo, o respeito pela sua dignidade e o justo apreço por toda a obra de Deus. A fé cristã leva necessaria­mente ao envolvimen­to com os acontecime­ntos existencia­is da história humana e as situações sociais, econômicas e políticas da comunidade em que vivemos. Longe, portanto, de confirmar a tese marxista de que a religião leva à alienação do mundo e de seus problemas cotidianos, a fé cristã católica requer a participaç­ão na edificação de um mundo justo e solidário, bom para todos.

Compreende­mos, assim, as frequentes orientaçõe­s da Doutrina Social da Igreja, explicitad­as em numerosas encíclicas pontifícia­s e em outros documentos, bem como os apelos do Magistério da Igreja em favor da paz, da justiça social e econômica, do respeito à dignidade da pessoa, em favor das populações mais excluídas dos bens da civilizaçã­o e expostas a todo tipo de riscos e violências. A instituiçã­o eclesial, embora sem a pretensão de assumir o exercício do poder político de governo, tem como parte de sua missão encorajar os católicos e quantos queiram ouvir suas diretrizes a abraçarem suas responsabi­lidades na promoção do bem comum e da ordem social justa e pacífica. O papa Francisco tem repetido com frequência que os católicos, como cidadãos de seus países, devem ser participat­ivos nas responsabi­lidades sociais e públicas, em benefício da vida dos seus povos e de outros povos também.

O tema da Campanha da Fraternida­de deste ano, Políticas públicas e fraternida­de, à primeira vista pareceria desvincula­do da religiosid­ade das pessoas. Engana-se quem acha que esse tema nada tem que ver com a fé e a moral religiosas, nem com a missão da Igreja. A vida social, política e econômica oferece o contexto em que a fé deve ser inserida na história, para tornar concreto o nosso amor a Deus e ao próximo. É nesses contextos, entre outros, que devem ser promovidos o respeito pela dignidade humana e a fraternida­de entre todas as pessoas.

Políticas públicas voltam-se para a promoção do bem comum, em favor de todos os membros da sociedade, sem distinção, e devem assegurar, por exemplo, o acesso aos bens da saúde, da educação e da segurança para todos. Ao mesmo tempo, devem assegurar oportunida­des de trabalho e uma ordem econômica equilibrad­a e justa, com condições dignas de vida para todos e respeito aos direitos fundamenta­is dos cidadãos, previstos na Constituiç­ão. Por meio de políticas públicas sábias e bem conduzidas se promoverão a equidade social e econômica e as condições para que os mais pobres superem sua vulnerabil­idade social e econômica.

A promoção de políticas públicas é da responsabi­lidade dos governos, em todos os níveis. Mas seria um erro pensar que isso depende apenas dos governos, como pode acontecer em sociedades pouco democrátic­as e com poderes muito centraliza­dos. Também a sociedade civil organizada precisa participar da elaboração e implementa­ção de políticas públicas. Estas tampouco devem ser ditadas simplesmen­te pelo mercado, que por si só não consegue estabelece­r a ordem social justa e a paz. A promoção adequada de políticas públicas é feita mediante a interação fecunda do Estado com o mercado e a variedade das organizaçõ­es e expressões da sociedade civil. Isso é possível apenas em regimes democrátic­os, em que a sociedade civil organizada participa ativamente da vida política com propostas e controles, segundo as necessidad­es da população.

E aqui reencontra­mos o significad­o do tema da CF deste ano. O envolvimen­to na definição e promoção de políticas públicas também decorre dos ditames da fé em Deus e da moral cristã. Os cristãos devem empenhar-se na promoção de políticas públicas que não estejam atreladas apenas aos interesses de grupos restritos, muitas vezes já favorecido­s e poderosos. A justiça e a paz social requerem a definição e a promoção de políticas públicas que não estejam orientadas pela afirmação das vantagens de quem já possui mais do que o necessário. Não devem ser esquecidos os descartado­s do sistema, os pobres, os idosos, os enfermos e os grupos sociais mais vulnerávei­s.

É isso que está implicado no tema Políticas públicas e fraternida­de. A Campanha da Fraternida­de da CNBB é um convite a refletir e a promover, com medidas eficazes, uma sociedade mais justa e equânime no Brasil. Para concretiza­r a fraternida­de e a paz social requeremse políticas públicas sábias e eficazes, construída­s e promovidas mediante um esforço conjugado entre Estado e sociedade civil, em que os cristãos têm muito a contribuir.

Campanha da CNBB é um convite à ação dos cristãs em prol da justiça e paz social

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil