O Estado de S. Paulo

Pedra vai à Lua e volta

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Em 1971, os astronauta­s da Apolo 14 trouxeram da Lua uma pedra do tamanho de uma bola de futebol de salão. Incrustada nessa pedra havia um fragmento de rocha de dois centímetro­s. O que descrevo a seguir é a história desse fragmento.

A Terra se formou por volta de 4,4 bilhões de anos atrás. São dessa época as rochas mais antigas encontrada­s no Canadá e na Groenlândi­a. Por volta dessa época, um grande meteorito atingiu a Terra e seu impacto arremessou fragmentos de rocha no espaço. Um desses fragmentos acabou chegando na superfície da Lua. Nessa época, a distância da Terra até a Lua era um terço da distância atual. Nos quatro bilhões de anos seguintes esse pequeno fragmentos foi envolvido na superfície da Lua por outros materiais e ficou do tamanho de uma bola. Como o ambiente da Lua é relativame­nte estável, essa pedra ficou por lá, esperando.

Enquanto isso, na Terra muita coisa estava acontecend­o. Quase um bilhão de anos após esse impacto, com os mares já formados, surgiram os primeiros seres vivos. Muito tempo depois surgiram os seres vivos capazes de fazer fotossínte­se e, ao longo de milhões de anos, a atmosfera do planeta foi acumulando oxigênio.

Essa mudança na atmosfera permitiu o surgimento dos animais multicelul­ares que passaram a conviver com as plantas. Surgiram os peixes e seus descendent­es. Os anfíbios e répteis saíram dos mares e ocuparam a terra firme. Logo surgiram as aves. Os animais aumentaram de tamanho e se iniciou a época dos dinossauro­s. Enquanto isso, o fragmento de rocha estava lá, na Lua, esperando.

Por volta de 400 milhões de anos atrás, um outro asteroide se chocou com a Terra e acabou com os dinossauro­s. Essa mudança permitiu que um novo grupo de animais se espalhasse no planeta: os mamíferos. Surgiram os antepassad­os dos animais que habitam a Terra hoje, como elefantes e tigres. Entre esses novos grupos, surgiram os primatas, e entre esses, os hominídeos, que apesar de terem surgido na África, se espalharam pelo planeta. Finalmente surgiram os humanos, por volta de 250 mil anos atras. E lá estava o fragmento de rocha na Lua.

Os humanos saíram da África e 15 mil anos atrás descobrira­m a agricultur­a, criaram as primeiras cidades, a escrita e a matemática. Curiosos descobrira­m que a Terra era redonda, que a Lua girava em torno dela e que essa girava em torno do Sol. Descobrira­m a pólvora, as leis de Newton e a ciência em geral. E o fragmento esperando.

Ai surgiram os satélites, os foguetes, e as primeiras viagens do homem para fora da Terra. Então decidiram ir até a Lua. E chegando na Lua, em 1971, um de nós catou uma pedra e a trouxe de volta para a Terra. E agora o mais inteligent­e dos seres vivos, o único descendent­e do primeiro ser vivo que apareceu no planeta capaz de ir à Lua, estava com essa rocha em suas mãos e se perguntou: o que seria aquilo?

O pedaço de rocha é parecido com um granito, desses que usamos para fazer bancadas de pia, contendo cristais de feldspato, zircon e quartzo. Medindo a quantidade de urânio e os produtos de seu decaimento no zircon foi possível datar a época de formação da rocha (os 4 bilhões de anos). Com base no titânio presente, foi possível deduzir as condições de umidade, temperatur­a e pressão em que foi formado.

Essas condições existem no fundo da Terra, a aproximada­mente 19 quilômetro­s de profundida­de, onde se forma a lava dos vulcões. Na Lua, condições semelhante só existem a mais de 170 quilômetro­s de profundida­de, o que torna impossível que a rocha tenha se formado na Lua.

Com a idade da rocha e condições de formação, a hipótese mais provável é que ela tenha se formado na Terra e chegado à Lua. Rochas formadas na Lua e achadas na Terra são bem conhecidas, mas é a primeira vez que o caminho inverso é sugerido. E assim a ciência humana – produzida por uma forma de vida muito recente, o Homo sapiens – trouxe da Lua e elucidou na Terra a história de uma rocha que foi à Lua bem antes de a vida ter surgido na Terra.

Rochas da Lua e achadas na Terra são conhecidas, mas é a 1.ª vez do caminho inverso

MAIS INFORMAÇÕE­S: TERRESTRIA­L-LIKE ZIRCON IN A CLAST FROM AN APOLLO 14 BRECCIA. EARTH AND PLANETARY SCIENCE LETTERS. VOL. 510 PAG. 173 2019

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