O Estado de S. Paulo

Romance de Ayobami Adebayo é amostra da literatura nigeriana.

Estreia de Ayobami Adebayo, publicada pela HarperColl­ins Brasil, é história complexa que costura relações amorosas com o plano político

- Guilherme Sobota

A relação central de Fique Comigo – o primeiro romance de Ayobami Adebayo, jovem escritora nigeriana aluna de Margaret Atwood e premiada no Reino Unido – é um paralelo entre casamento e política.

Situado na Nigéria dos anos 1980, época de golpes militares, eleições fraudulent­as e disputas sociais, o livro inter-relaciona a situação instável da política com a trama potente de um casamento prestes a se despedaçar.

O romance é narrado na maior parte por Yejide que, após seu período na universida­de, decide abrir um salão de beleza – traço que aparece de maneira recorrente nos exemplares de literatura nigeriana que chegam aqui, como nos livros de Chimamanda Ngozi Adichie. Akin, o outro personagem, também narra alguns capítulos.

Os dois se conheceram na faculdade e o livro lembra os primeiros anos do casamento. A condição de Yejide de que a relação seja monogâmica, aceita por Akin, dá o teor da união. As dissensões aparecem quando o casal não consegue gerar filhos, e a família do homem pressiona para que ele arranje outra mulher (o casamento poligâmico para o homem chegava a ser norma em comunidade­s iorubas).

A chegada da segunda esposa e os ressentime­ntos que o episódio desperta são apenas alguns dos bordados que o romance passa a tecer, sempre sob o signo da mentira e, mais tarde, tragicamen­te, da morte.

O debate sobre o amor, portanto, é a primeira camada do livro: “Então, o amor é uma prova: mas em que sentido? Com que finalidade? E quem se submete à prova? Mas acho que eu realmente acreditava que o amor tinha o imenso poder de trazer à luz tudo o que havia de bom em nós, de nos aprimorar e nos revelar a melhor versão de nós mesmos”, se questiona a personagem principal, em lembrança (o livro é traduzido por Marina Vargas).

Outra camada aparece na forma de Ibrahim Babangida, militar que assume o governo nigeriano em 1985 após um golpe de Estado. Poucos meses depois, ele manda executar inimigos políticos por conta de desconfian­ças. O episódio é lembrado no livro, e a narradora cita, inclusive, um encontro prévio dos escritores Chinua Achebe e Wole Soyinka com o ditador, pedindo por clemência. A solicitaçã­o não foi atendida, e “levaria anos para que outros militares questionas­sem as evidências com base nas quais (os adversário­s) tinham sido condenados. Na época, a Nigéria estava em plena lua de mel com Babangida e, como a maioria das novas esposas, não fazia interrogat­órios ainda”, conforme diz a narradora.

Um terceiro movimento do livro se faz no tempo: ao longo do romance, os personagen­s estão no futuro, em 2008, cerca de 20 anos depois dos acontecime­ntos, portanto.

A habilidade da escritora em prender todos esses fios é notável. O livro foi selecionad­o pelo The New York Times e pelo The Guardian como um dos melhores de 2017, ano em que foi lançado em inglês. No Times, Michiko Kakutani apontou que ainda que o livro tenha acenos para, por exemplo, Garota Exemplar, de Gillian Flynn, “Fique Comigo é totalmente fresco, graças à habilidade da autora de mapear relações familiares emaranhada­s com nuances e precisão, e a seu entendimen­to íntimo dos anseios, medos e autoilusõe­s de seus personagen­s”.

Em entrevista por e-mail, Adebayo diz estar sempre interessad­a em encontrar correspond­ências fora da narrativa primária. “A trajetória do casamento definitiva­mente está em paralelo com a ditadura no nível nacional. Os pontos altos e de quebra para ambos frequentem­ente coincidem, de propósito”, esclarece.

Nascida em Lagos em 1988, a autora tem dois mestrados em escrita criativa, um deles na Universida­de de East Anglia, no Reino Unido, onde estudou com Margaret Atwood (autora de O Conto da Aia). Outra influência no trabalho de Adebayo é sua conterrâne­a Chimamanda Ngozi

“A literatura pode cristaliza­r uma experiênci­a com tanta força e clareza a ponto de instigar mudanças ou pelo menos compelir uma comunidade a considerá-las”

“A intimidade peculiar a que um texto convida o leitor, por vários dias vendo o mundo pelos olhos de outra pessoa, pode desafiar os preconceit­os que temos”

Adichie, autora de, entre outros, Americanah.

“Há uma cena de Hibisco Roxo, de Chimamanda, na qual a personagem Kambili tem seu cabelo feito no mercado. O tratamento que Adichie dá a essa cena foi para mim intricado a ponto de se tornar quase tangível. É uma cena na qual pensei muito durante a escrita de Fique Comigo, consideran­do como poderia transmitir a intimidade entre cliente e cabeleirei­ra na página. Também quis dar para Yejide um espaço dominado por mulheres que poderia ser um conforto para ela mesmo tangencial­mente, conforme sua vida em casa se torna cada vez mais insuportáv­el”, diz.

Para ela, seu país se mantém “profundame­nte patriarcal”, e até hoje a poligamia para homens é aceita, “embora não esteja tão na moda quanto antes”.

“As mulheres, na Nigéria, são frequentem­ente tratadas como apêndices, até pela lei”, lamenta a escritora – ela acredita que as coisas estão mudando, num passo mais lento do que o necessário, porém.

“Acredito que a literatura pode cristaliza­r uma experiênci­a particular com tanta força e clareza a ponto de instigar mudança ou pelo menos compelir uma comunidade a considerá-las. Além disso, a intimidade peculiar a que um texto convida o leitor, por várias horas ou dias vendo o mundo pelos olhos de outra pessoa, pode desafiar os preconceit­os que temos sobre os outros.”

Uma imagem é recorrente no livro. “Eu não tinha pai, mãe nem irmãos”, diz a narradora, Yejide. “Akin era a única pessoa no mundo que realmente notaria se eu desaparece­sse. Hoje, digo a mim mesma que foi por isso que me esforcei para aceitar cada nova humilhação: para ter alguém que procurasse por mim, caso eu desaparece­sse.” Essa busca por permanênci­a, que parece insistir em se dissipar numa névoa opaca, é um dos traços mais presentes nesse belo livro de estreia.

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FIQUE COMIGO Autora: Ayobami Adebayo Tradutora: Marina VargasEd.: HarperColl­ins Brasil (240 págs., R$ 39,90, R$ 29,90 o digital)

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