O Estado de S. Paulo

Sobre transplant­e de instituiçõ­es

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Um dos instrument­os que o ministro Moro quer incorporar ao seu pacote de segurança publica é a “negociação de culpabilid­ade” (plea bargain) dos americanos, em que o réu abre mão de declarar-se inocente e forçar o Estado a processá-lo e declarase culpado em troca de uma redução da pena. Esse dispositiv­o reduziu em até 90% os processos por crimes menores nos Estados Unidos.

Nem sempre, porém a transposiç­ão de dispositiv­os de lá para cá dá resultado. Em geral, importa-se só metade da receita e então os sinais se invertem. O desastre master chef da modalidade é o de replicar uma Suprema Corte encarregad­a de examinar a conformida­de das leis e ações dos governos e cidadãos com os 7 artigos e 28 emendas da Constituiç­ão deles e depois escrever uma Constituiç­ão com 250 artigos, 104 dispositiv­os transitóri­os e 99 emendas. Mas peças bem mais prosaicas também produzem resultados controvert­idos. As delações premiadas, por exemplo. Elas puseram altos criminosos de colarinho branco ao alcance da Justiça pela primeira vez em nossa História, mas logo passaram a ser instrument­alizadas em disputas da privilegia­tura pelo controle do “sistema”.

Toda lei é uma faca de dois gumes. Quanto mais forte e pesada a pena, mais valiosa será a isenção e, portanto, mais poder de corromper o aplicador da lei ela terá. O caso mais emblemátic­o foi aquele tramado entre a Procurador­ia-Geral da República sob Rodrigo Janot e os irmãos “ésleys”, da JBS, em que procurador­es atuaram a soldo dos bandidos e houve outras estripulia­s grosseiras que resultaram em que a reforma da Previdênci­a fosse abortada, o País fosse condenando a mais dois anos de paralisia e os agentes das falcatruas nacionais e internacio­nais do PT que provariam que Petrobrás, Odebrecht e Cia. foram coisa de criança saíssem livres, leves e soltos. É com esse retrospect­o em foco que já se instalou o debate sobre como evitar que a “negociação de culpabilid­ade”, em vez de apenas acelerar a justiça, que é sinônimo de fazer justiça, não se vá transforma­r em mais um elemento de comércio de impunidade.

Outros pontos do pacote de Moro e das propostas pregressas do Ministério Público são passíveis do mesmo tipo de consideraç­ão. A pergunta que interessa, portanto, é: por que, exatamente, instrument­os idênticos funcionam perfeitame­nte lá, mas não aqui?

Não, não é “porque os brasileiro­s são mais corruptos que os outros”. O problema é muito mais objetivo que isso. A questão-chave é a definição de quem terá o poder de aplicar essas leis, e como. Enquanto forem o Estado e seus agentes os únicos autorizado­s a decidir o que deve ou não ser investigad­o no Estado e em seus agentes, não tiraremos o pé da lama. O que mais falta não são mais leis e agentes do Estado pouco interessad­os em “combater a corrupção”, mas sim controle direto do eleitorado sobre o Estado e seus agentes pela simples razão de que só os roubados têm razões objetivas diretas para exercer essa tarefa sem se deixar corromper. Eles e somente eles, condiciona­dos pela obrigação de obter consenso, devem ter o poder de decidir como devem começar e como devem acabar os processos contra os seus políticos e funcionári­os corruptos ou relapsos.

É esse vetor primário de forças positivo que garante que o sistema americano opere sempre na boa direção ou, na pior hipótese, tenha o seu rumo corrigido de qualquer desvio eventual. Como têm a prerrogati­va de retomar mandatos, vetar leis, propor e aprovar as suas próprias a qualquer momento e decidir a cada quatro anos quais juízes permanecem ou não com o poder de julgar os outros, os eleitores americanos estão dispensado­s de pedir vênia a quem quer que seja para mandar os seus corruptos se haver com a Justiça, emendar sentenças ou ir aperfeiçoa­ndo as suas instituiçõ­es na exata medida da necessidad­e. Vivem num estado de reforma permanente, obra coletiva na qual cabe aos agentes do Estado apenas dar o acabamento técnico ao que o povo decide.

Em meio aos milhares de “special elections” de 2018 para cassações de políticos e funcionári­os, vetos ou aprovações de leis, recusa de aumentos de impostos, etc., dois casos afetando o Judiciário chamaram especial atenção. No primeiro, toda a Suprema Corte do Estado de West Virginia (equivalent­e aos nossos TJs) sofreu recall porque seus seis integrante­s ou gastaram dinheiro em reformas dos seus gabinetes considerad­as abusivas (troco comparado aos números da corrupção brasileira), ou foram flagrados usando verbas de combustíve­l em viagens de interesse pessoal. No segundo, o juiz Aaron Persky, membro da Suprema Corte do Estado da Califórnia, sofreu recall por ter condenado a apenas seis meses de prisão um estudante de Stanford que estuprou uma colega enquanto estava desmaiada. Um por falta, os outros por excesso, lá interveio o povo para educar e calibrar a máquina pública e a Justiça às suas necessidad­es e conveniênc­ias.

A montanha de entulho institucio­nal que tem mantido o Brasil paralisado foi acumulada pela falta de qualquer controle exterior ao âmbito do Estado sobre o Estado e seus agentes. E não poderá ser desmontada com reformas pontuais propostas por eles para eles mesmos. Para isso será necessário concentrar todas as energias da cidadania em exigir os instrument­os necessário­s para impor ela própria a sua vontade aos seus representa­ntes e servidores, o que começa pela adoção de eleições distritais puras, as únicas que permitem identifica­r quem representa quem e, assim, definir quem tem o direito de demitir quem numa “democracia representa­tiva”.

Ainda que comecemos por fazer isso só no âmbito municipal, não haverá mais reversão. O uso dessa arma vicia e o País, reconcilia­do com a democracia, ganhará a condição de ir desconstru­indo peça por peça o monturo legislativ­o no qual está aprisionad­o na velocidade que convier a cada segmento da sua população, pois, não importa a partir de onde nem em qual velocidade, a felicidade para uma sociedade consiste apenas em poder andar sempre para a frente e com as próprias pernas.

A felicidade para uma sociedade é andar sempre para a frente e com as próprias pernas

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