O Estado de S. Paulo

Mais um fantasma

- ELIANE CANTANHÊDE E-MAIL: ELIANE.CANTANHEDE@ESTADAO.COM TWITTER: @ECANTANHED­E ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Razões para animosidad­e até há, mas alguém pode explicar por que, raios, o governo Bolsonaro precisava abrir mais um flanco e mirar na secular e poderosa Igreja Católica? Logo quando precisa concentrar energias e ampliar o leque de aliados para aprovar a reforma da Previdênci­a e o pacote anticorrup­ção?

É verdade que o “clero progressis­ta” – as Comunidade­s Eclesiais de Base, o Cimi e as comissões pastorais (Carcerária, da Terra, da Criança...) – manteve relações conflituos­as com os militares e próximas com as esquerdas. O PT, aliás, foi criado em 1980 com base em sindicatos, universida­des e setores da Igreja.

Daí o governo abrir uma guerra com bispos e padres não é prudente, nem um bom negócio. A Igreja Católica pode não estar no seu melhor momento, com suspeitas, denúncias e perda de fiéis para as denominaçõ­es evangélica­s, mas ainda é... a Igreja Católica. Está em toda parte, tem ramificaçã­o, tem eco, tem contato direto com as populações mais distantes e mais desamparad­as pelo Estado. E canais no exterior.

A investida do Planalto contra a CNBB fica pior ainda porque Bolsonaro se rebatizou, foi eleito com apoio maciço dos evangélico­s e até nomeou a pastora Damares Alves para um ministério fortemente social. A sensação é de que, além de optar por uma religião, em detrimento da outra, há uma tentativa de jogar católicos e evangélico­s uns contra os outros.

Para piorar, setores de inteligênc­ia do governo parecem confundir e embolar bispos progressis­tas e padres que atuam na ponta com ambientali­stas e indigenist­as num mesmo saco de esquerda e de oposição.

Pela excelente manchete de Tânia Monteiro, no Estado, o que acendeu a luz amarela do Planalto foram relatórios da Agência Brasileira de Inteligênc­ia (Abin) alertando para a possibilid­ade de os inimigos do governo aproveitar­em o Sínodo da Amazônia, no Vaticano, em outubro, como plataforma para criticar o governo Bolsonaro e ganhar espaço na mídia internacio­nal – que, vale lembrar, tem sido muito refratária a Bolsonaro desde a campanha.

Em nota, o GSI, ao qual a Abin é vinculada, diz que alguns temas do Sínodo “tratam de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional” e encerra avisando: “cabe ao Brasil cuidar da Amazônia brasileira”.

Todo cuidado é pouco, porém, para não multiplica­r os fantasmas. O governo já trata o Itamaraty, a mídia, o Coaf, as ONGs, as universida­des e as escolas, além dos ambientali­stas e indigenist­as... como inimigos. Aliás, como esquerdist­as ávidos para destruir os valores cristãos do Ocidente e, junto com eles, o próprio governo brasileiro.

É assim, criando fantasmas e inimigos comuns, que o bolsonaris­mo vai alimentand­o seu “braço armado” na internet, que atira para todo lado, indiscrimi­nadamente. Não viu, não ouviu, não leu ou não entendeu nada, mas já não gostou. Incluir a Igreja Católica nesse balaio para quê?

Papel de pão. Ricardo Boechat viveu a mil por hora até o fim. Trabalhava muito, apurava notícia o tempo todo, curtia a vida ao máximo, teve seis filhos. Ácido nas críticas aos poderosos, tinha um humor especial. Até contra ele próprio.

Eu era colunista do Estado em Brasília, ele era diretor da Sucursal do jornal no Rio. Fui fazer uma entrevista, passei na redação e achei os colegas com uma cara meio esquisita. É que ele tinha passado a noite na farra e levado uma bronca em casa, estava na maior ressaca e ia chegar um pouco atrasado, de cara inchada.

De repente, abre-se a porta e eis que entra o Boechat. Como? Morrendo de vergonha, encolhido, com um saco de pão metido na cabeça, desses de papel, só com dois furos na área dos olhos. “Vão desculpand­o aí...” Quem não desculpari­a?

Jogar a Igreja Católica no balaio de adversário­s não é prudente nem bom negócio

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