O Estado de S. Paulo

Barbas e não barbas

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Foi dito aqui, na última conversa, que Rubem Braga e Fernando Sabino, na improvisad­a estreia de sua Editora do Autor, em setembro de 1960, adicionara­m escritos seus ao livro Furacão sobre Cuba – coletânea de artigos de Jean-Paul Sartre a propósito de visita que fizera à ilha de Fidel Castro, onde a revolução tomara o poder fazia pouco mais de um ano. Lembrou-se ainda que os dois cronistas também tinham estado em Havana, em março daquele ano, acompanhan­do, como jornalista­s, uma comitiva de Jânio Quadros, então candidato à Presidênci­a da República. Na volta, publicaram suas impressões – Braga na revista Senhor, Sabino no Jornal do Brasil. E, na amalucada aventura de organizar, traduzir e botar na praça – tudo isso em sete dias – a prosa jornalísti­ca do filósofo francês, decidiram acrescenta­r a ela as suas próprias reportagen­s.

A crônica da semana passada ateou em vários leitores – sim, os há! – a vontade de saber dos textos que ajudaram a encorpar o lançamento inaugural da Editora do Autor, escritos que, por decisão de Braga e Sabino, não tardaram a desaparece­r das reedições de Furacão sobre Cuba. Os motivos da subtração editorial não foram revelados, mas é possível imaginar o que levou a ela. Primeiro, tratava-se de textos jornalísti­cos, por sua natureza escritos para o dia, para no máximo o mês seguinte. Depois, a radicaliza­ção do regime cubano, cada vez mais embicado para a esquerda, pode ter levado os dois cronistas, no início simpáticos à novidade, como tanta gente, a concluir que era hora de tirar o time.

Quase seis décadas depois, quem quiser ler o relato de Rubem Braga terá que garimpar nas hemeroteca­s a edição de junho de 1960 da Senhor, ou recorrer a uma seleta da revista editada por Ruy Castro para a Imprensa Oficial paulista. O texto, sob título morno – “Cuba: o assunto é revolução” –, não demorou a se cobrir de pátina. Mesmo quando em tinta fresca, aliás, a reportagem quase nada tinha da graça daquele que Stanislaw Ponte Preta apelidou de “O sabiá da crônica”. Talvez um pio no quarto parágrafo, no qual o Braga alfineta Fidel Castro por não ter cumprido a promessa de raspara barbatão logo tomasse o poder.

A explicação, arrisca o cronista, poderia estar no fato de que o movimento não estava ainda suficiente­mente firme nos arreios; e também na constataçã­o de que o jovem (33 anos) Fidel, embora dono de “testa bonita e um invejável nariz grego”, tinha “o queixo curto”, imperfeiçã­o da natureza que uma barba viera camuflar, de modo a conferir “dignidade” à cabeça do cabeça da Revolução.

Tão escaldado quanto cético, Braga observou que Cuba estava sendo “governada por jovens inexperien­tes”, sendo de admirar que não tivessem praticado “um maior número de tolices”. E reproduziu o que ouvira de um brasileiro estabeleci­do no país havia décadas: “Você bota um Carlos Lacerda esquerdist­a de presidente da República e os rapazes da UNE formando o ministério, e terá uma ideia do governo de Cuba”.

Ao contrário de Rubem Braga, Fernando Sabino, passados alguns anos, não viu problema em exumar sua reportagem cubana – “A revolução dos jovens iluminados” – e incluí-la em livro. Competente editor que era, não o fez sem antes barbear e escanhoar o texto, tosando aqui e ali madeixas que a empolgação da hora fizera por demais assanhadas. Ladino, viu que o assunto renderia mais de uma abordagem, para publicação em diferentes coletâneas de escritos (De cabeça para baixo, O gato sou eu e o interessan­te e pouco lido Livro aberto), nas quais encaixou também histórias colhidas nas franjas da reportagem.

Dessas, uma das mais saborosas ocorreu numa recepção na embaixada brasileira, durante a qual Fidel conversou com jornalista­s. Antes do papo, alguém o convenceu a tirar o cinturão em que levava seu intimidado­r Colt 45. Mais tarde, nas despedidas, o comandante distraiu-se, e bom tempo se passou até que, longe dali, desse pela falta da arma.

Uns gatos pingados remanescia­m na embaixada quando, sem avisar, Fidel irrompeu no salão. Não encontrand­o mais que o cinturão, mandou às favas a diplomacia: “Detesto ladrões”, rugiu ele, acrescenta­ndo que preferia “levar um tiro a ser roubado”.

Único jornalista presente no esgarçado fim de noite, Sabino chegou a temer que as suspeitas recaíssem sobre ele. Se isso acontecess­e, programou, nada lhe restaria senão sacar a frase célebre de Fidel ao ser condenado, em 1953, pela ditadura de Fulgencio Batista, que ele poria abaixo poucos anos mais tarde: “A História me absolverá!”.

Nunca se soube quem surrupiou a pistola do timoneiro da revolução cubana – “presente de Che Guevara”, registrou Sabino, “chapeada a ouro na culatra, com o seu nome gravado”. Teria sido a mesma criatura que ele viu catar como relíquia um toco de charuto deixado pelo comandante num cinzeiro? O mistério do Colt 45 se somaria a outro, igualmente insolúvel, o do sumiço de um terno que Jânio Quadros confiou à lavanderia do Hotel Riviera e nunca mais recuperou.

Em outra ocasião, Sabino por pouco não se meteu numa enrascada. Durante uma coletiva, perguntou a Fidel o que tinha acontecido a Camilo Cienfuegos, romântico herói da revolução, desapareci­do na queda de um aviãozinho do qual jamais se encontrou um só destroço. “Esta pergunta é ofensiva aos ideais da revolução”, fulminou o comandante, encerrando abruptamen­te a entrevista e desafiando Sabino a levar a provocação “ao povo cubano”. Num momento em que a televisão exibia a execução de adversário­s no paredón revolucion­ário, o perguntado­r, mineiramen­te, achou prudente pôr de molho as barbas que não tinha.

Braga cobrou de Fidel a promessa de raspar a barba. E Sabino, imberbe, pôs as dele de molho

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil